A Noite

Want create site? Find Free WordPress Themes and plugins.

Por Victor Faria

Amo o jogo apaixonadamente. Amo-o como quem ama seu país ou sua amante, com um amor instintivo, profundo, invencível. Amo-o com todos os sentidos, com meus olhos que o veem, com meu olfato que o respira, meus ouvidos que escutam seu silêncio. Num ar azul, um ar quente, identificado em resultados e gritos de torcida, vibrante e passional.

As ditas regras me cansam, me aborrecem. É brutal e silencioso. Levanto-me com dificuldade, saio a contragosto, e a cada passo, cada movimento, cada gesto, cada palavra, cada pensamento me cansa como seu eu levantasse um fardo que me esmagasse.

Mas, quando o sol se põe e a bola rola, invade-me uma alegria confusa, uma invasão de todo meu corpo. Desperto, me animo. À medida que saem as jogadas, sinto-me outro, mais moço, mais forte, mais alerta, mais feliz. Olho para a grande torcida nas arquibancadas que logo vai se adensando: ela afoga a cidade, como uma onda impalpável e impenetrável, ela esconde, apaga, destrói as formas, abraça as casas, os seres, os monumentos com seu toque imperceptível. Então sinto uma vontade de gritar de prazer, de correr pelos flancos do gramado; um desejo de amar, impetuoso, invencível, arde em minhas veias.

O que amamos com violência sempre acaba nos matando. Mas como explicar o que acontece comigo? E, mesmo, como explicar que sou capaz de contá-lo? Não sei, já não sei, sei apenas que isso existe – pronto.

Portanto, ontem – era ontem? – sim, sem dúvida, a menos que tenha sido antes, um outro dia, um outro mês, um outro ano – não sei. Mas deve ser ontem, já que o dia não mais raiou, já que o sol não reapareceu. Mas desde quando dura a noite? O jogo? Desde quando?… Quem poderá dizer? Quem algum dia saberá?

No ar leve, tudo estava claro, desde os planetas até os refletores do estádio. Tantas luzes brilhavam lá no alto e na cidade que as trevas pareciam luminosas. As noites luzentes são mais alegres que os grandes dias de sol. Nas arquibancadas todos riam, torciam, gritavam. Entrei em campo. Lá dentro estava tão claro que me senti agoniado, também com o coração meio obscurecido por anterior choque de opiniões. Cheguei ao Vélodrome. E os globos de luz elétrica pareciam luas cintilantes e pálidas, ovos de lua caídos no céu, pérolas monstruosas que faziam empalidecer os trajes da torcida mandante.

Parei em frente ao banco de reservas para olhar o campo, a longa e admirável estrada de grama, as linhas de fundo e os jogadores! Os jogadores lá no meio, atletas jogados ao acaso na imensidão do campo, onde se desenham planos táticos estranhos que tanto fazem sonhar, que tanto fazem pensar.

Estava tomado por um arrepio singular, uma emoção imprevista e poderosa, uma exaltação de meu pensamento que raiava a loucura. Andei muito tempo, muito tempo. A cidade adormecia e nuvens, grossas nuvens pretas, espalhavam-se lentamente no céu.

Pela primeira vez senti que algo estranho, novo, iria acontecer. Tive a impressão de que fazia frio, de que o jogo, meu modo bem-amado de jogo, pesava sobre meu coração. Agora estava tudo deserto. Só dois policiais a caminhar nas arquibancadas vazias ainda iluminadas. Em passos sincronizados encenavam um espetáculo de ápice e depressão, as luzes e as sombras a destacar o óbvio de seus defeitos, o desencantar de qualidades. Saí do Vélodrome em direção aos bulevares. Mais ninguém, mais nenhum café iluminado, apenas alguns em compasso apressado. Nunca tinha visto Marselha tão morta, tão deserta. Puxei meu relógio. Era tarde.

Uma força me empurrava, uma necessidade de andar. Percebi que nunca tinha visto uma noite tão escura, pois não havia ninguém ao meu redor. Um firmamento de nuvens, cerrado como a imensidão, afogara as estrelas e parecia descer sobre a terra para liquidá-la.

Retornei. Ninguém parecia habitar meu redor. Na praça perto do estádio um bêbado quase me deu um encontrão, depois desapareceu. Por algum tempo ouvi seu passo desigual e sonoro. Eu ia andando. Um senhor se zangava: “Ei, cavalheiro, escute”. Apertei o passo para evitar sua mão estendida. Depois, um catador de trapos a vasculhar a sarjeta. Sua pequena lanterna tremulava bem rente ao chão. Perguntei: “Que horas são, meu amigo?”

Ele respondeu: “Eu lá sei. Sei que é tarde demais, que não há mais tempo”.

Reparei que todas as luzes se apagavam. Sei que nessa época elas são apagadas mais cedo, antes do amanhecer, por economia; mas o dia estava longe, tão longe de raiar!

“Vou para o campo, pensei, pelo menos lá encontrarei vida.”

Pus-me a caminho, mas não enxergava nada nem mesmo para me orientar. Andava devagar, como se anda num bosque, contando as ruas para reconhecê-las. Me perdi; perambulei. Toda a Marselha dormia, com um sono profundo, apavorante. Onde estava? Que loucura apagar as luzes tão cedo! Nem um passante, nem um vagabundo, nem um grito de torcedor apaixonado. Nada.

Onde estariam aqueles policiais? Pensei: “Vou gritar, eles virão”. Gritei. Ninguém respondeu.  Chamei mais alto. Minha voz se foi, sem eco, fraca, abafada, esmagada pela noite, por aquela noite impenetrável.

Meu apelo desesperado ficou sem resposta. Que horas eram? Puxei meu relógio, mas não havia luz. Escutei o leve tique-taque do pequeno mecanismo com alegria desconhecida e estranha. Ele parecia viver. Eu já não estava tão sozinho. Que mistério! Recomecei a andar com um cego, tateando os muros, e a toda hora levantava os olhos para o céu, esperando enfim o raiar do dia, mas o espaço estava negro, todo negro, mais profundamente negro que a cidade.

Que horas podiam ser? Parecia que eu caminhava havia um tempo infinito, pois minhas pernas amoleciam debaixo de mim, meu peito arfava, e eu sofria terrivelmente sozinho.

E de repente, percebi que estava chegando ao Vélodrome. O campo estava deserto, sem um ruído, sem um movimento, sem uma bola, sem um jogador, sem um par de luvas ou chuteiras – as arquibancadas estavam vazias, imóveis, abandonadas, mortas! Invadiu-me um pavor – horrível. O que estava acontecendo?

Fui embora. Mas a hora? A hora? Quem me diria a hora? Nos campanários e nos monumentos nenhum relógio batia. Pensei: “Vou abrir o vidro do meu relógio e sentir com meus dedos os ponteiros”. Puxei meu relógio… ele já não funcionava… estava sem tempo. Mais nada, mais nada, mais nenhum arrepio na cidade, nenhum clarão, nenhum vestígio de som no ar. Nada. Nem um ruído longínquo. Somente o vazio a percorrer meu corpo, frio, quase gelado, quase seco, quase morto.

E senti perfeitamente bem meu fim, que nunca mais teria força pra subir de novo aqueles degraus em direção ao campo, que ali deveria ser o fim. Eu também como os que ali padecem de fome, de cansaço, de frio.

 

Did you find apk for android? You can find new Free Android Games and apps.

Posts Relacionados

Deixar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode usar algumas tags HTML:

<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>