O Velho Deus

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Por Victor Faria

Garboso, esguio, com um traje leve de pano esvoaçante, a sombrinha aberta sobre o ombro e um velho panamá na mão, o senhor Buffon partia para seu singular veraneio em terras francesas.

Tinha descoberto um lugar, um lugar que não teria ocorrido a ninguém de seus próximos; e deleitava-se consigo mesmo, quando pensava nisso, esfregando as mãos nervosas.

Uns na montanha, uns à beira-mar, a maioria no campo: ele, nas catedrais de Montpellier. Por que não? Não é mais fresco que um bosque? E na santa paz que reina, também. Nos campos, os pilares da defesa; aqui, as colunas das naves; lá, à sombra das traves; aqui à sobra do Senhor.

― É, fazer o quê? É preciso paciência.

Já tivera ele, em tempo, glórias em campos internacionais. Mas nunca em veraneios de Eurocopa. A cada retorno, apesar da elegância de graciosos chorões violetas e o intenso tom de azul espalhado em todo esplendor receptivo, a dor de não carregar uma taça, de não trazer pra casa o fruto da conquista.

Restam-lhe, agora, as igrejas do sul da França para veranear e venerar.

― É, fazer o quê? É preciso paciência.

Já há muitos anos em Turim, não conseguira ainda visitar todas as igrejas. Deveria fazer esse ano, como veraneio, mas os planos seguiram maiores, de bravura indômita e luta.

Esperanças, ilusões, riquezas e tantas outras belas coisas havia conquistado o senhor Buffon ao longo da carreira: sua maior qualidade segue sendo a fé em Deus, que era, na escuridão angustiante da existência, como um pequeno lume: um lume que ele, carregando no peito, protegia como podia, com trêmulos cuidados, do gélido sopro de possíveis desenganos. Jogava como que comovido pelo turbilhão da vida, e ninguém se importava mais com o futuro do que ele.

E estava realmente certo disso, Gianluigi Buffon, que Deus o guiava graças àquele pequeno lume. Tão certo, que o pensamento do fim próximo, em vez de angustiá-lo, o confortava.

As ruas, sob o sol tórrido, estavam quase desertas. Todavia para ele havia sempre alguém, um moleque, um cocheiro de estação, que ao vê-lo passar acenava ou dirigia-lhe um gracejo.

Sorria ele também ao gracejo e apressava, quase sem querer, aqueles seus passos, para evitar a tentação de um outro gracejo àqueles ociosos.

― É, fazer o quê? É Preciso paciência.

Ao entrar na igreja designada para aquele dia de veraneio, queria antes de tudo aproveitar a chegada: repousar: E respirava fundo; enxugava o suor; depois, com cuidado, dobrava em quatro o lenço e punha-o na cabeça, assim sobrado, para resguardar-se do úmido frescor.

Alguma rara devota que se virasse um pouco para espiá-lo, ao vê-lo com aquele engraçado chapéu, soltava uma risadinha para si mesma.

Mas o senhor Buffon, naquele momento, sentia-se bem-aventurado, ao respirar aquela umidade com sabor de incenso que estagnava na solene vacuidade silenciosa do interior sagrado; nem lhe vinha a suspeita de que alguém, logo ali, na casa de Deus, pudesse achar graça em rir dele.

Tendo descansado um pouco, punha-se a examinar seus próximos planos, confrontos, como alguém que vá passar nele o dia inteiro. E estudava com amorosa atenção a qualidade adversária, cada um. Parava em frente ao altar, e cada mosaico representava um momento de sua trajetória, cada monumento fúnebre uma batalha, e com olhar estendido logo descobria as peculiaridades do tempo, a escola de seu tempo, as táticas a serem adotadas pela história da Azzurra, se genuína ou deturpada por emendas e retoques de restauros infelizes. Depois voltava a sentar; e se na igreja, como frequentemente acontecia àquela hora naquela estação, não houvesse ninguém além dele mesmo, aproveitava para anotar rapidamente em um modesto bloquinho algum apontamento, dúvida ou impressão.

Satisfeita assim a primeira curiosidade e cumprida a tarefa a que tinha se proposto, tirava do bolso algum livrinho de leitura amena, que pela dimensão podia parecer um livro de preces, e punha-se a ler. De tanto em tanto levantava a cabeça para recapitular ou imaginar diante dos olhos a cena descrita pelo poeta. E com aquela leitura de livros profanos não temia ofender a casa do Senhor. Segundo seu próprio modo de ver, Deus não podia desgostar das coisas belas criadas pelos poetas para inocente delícia dos homens.

Cansado da leitura, com os olhos fixos no vazio e roçando o indicador e o polegar das duas mãos, abandonava-se às próprias fantasias ou às lembranças dos jogos perdidos. Às vezes, quando assim fantasiava, absorto, avistava diante dele algum busto que parecia estar ali espiando todos na igreja.

― Oh! – fazia então, balançando a cabeça com um sorriso. ― Sorte tua, amigo meu. È bom ser só memória?

E levantava o olhar de novo para ler na inscrição fúnebre o nome daquele santo, depois tornava a sentar e conversar com o busto mentalmente.

Aqui estamos, meu caro! Pena que não seja permitido a mim encerrar minha jornada num lugar como esse. Mandaria cavar aqui as luvas que me acompanharam por tanto tempo. Parece-me um bom lugar pra que elas descansem. Tens cara de bom homem e é certo que cuidaria bem de meus bens. Parece-me que repousa melhor na casa de Deus. Este bom cheiro de incenso; e missas e preces todos os dias. No campo, pra ser sincero, chove.

A aposentadoria, porém, mesmo quando só em campo, é um tipo de libertação; porque no campo, mais do que para vencer, duramos para preparar-nos para lutar sem medo. Prêmios para depois de abandonar os campos não esperava; bastava-lhe levar consigo, do primeiro ao último passo, a consciência tranquila de sempre defender os seus por vontade própria. Conhecia as dúvidas tenebrosas acumuladas pela ciência do jogo como tantas nuvens negras sobre a luminosa explicação que a fé nos dá sobre o jogo, seja baseado em antigos relatos, seja por tê-las quase respirado em campo; e lamentava que o Deus de seus dias não pudesse mais ser aquele que em seis dias criara o mundo e o sétimo repousara.

Naquela manhã, ao entrar na catedral, ficara maravilhado com o aspecto do sacristão, um velho bonito extremamente barbudo e cabeludo, orgulhoso daquela barba lanosa e daquela cabeleira partida ao meio, descendo sobre os ombros em ondas desgrenhadas. O corpo atarracado, curvo, caído, parecia penar para sustentá-la, com todo aquele volume.

Ora, o senhor Buffon, enquanto refletia sobre sua carreira e eventual despedida, considerando amargamente os mesquinhos proveitos da alma nesse exaltado século, tendo dirigido o pensamento ao velho Deus da intacta fé dos padres, pouco a pouco adormeceu. E eis que aquele velho Deus, no sonho, aparece-lhe, curvo, caído, sustentando com dificuldade sobre os ombros a cabeça enormemente barbuda e cabeluda do sacristão da igreja; sentou-se ao seu lado e logo começou um desabafo, como fazem os velhinhos sentados na mureta em frente aos asilos:

― Maus tempos, meu filho! Vês como acabei? Fico aqui tomando conta dos bancos. De tanto em tanto, alguém. Mas não entra por Mim, sabes? Vem visitar os afrescos, os monumentos; até subiria nos altares para ver melhor as imagens pintadas! Maus tempos, meu filho. Ouviste? Viste os absurdos dos novos tempos? Eu, o Padre Eterno, não fiz nada: tudo fez-se por si, naturalmente, pouco a pouco. Não fui Eu que criei primeiro a luz, depois o céu, depois a terra e todo o resto, como haviam te ensinado nos teus verdes anos. Qual o quê! Não tenho mais nada a ver com isso, eu. As nebulosas, a matéria cósmica… E tudo fez-se por si. Faço-te rir: teve um, até, um certo cientista, que teve a coragem de proclamar que, tendo estudado o céu em todas as direções, não achou vestígio algum de minha existência. Dize: consegues imaginá-lo, este pobre homem que, armado de seu telescópio, empenhou-se em verdade em caçar-me por todo canto, quando não me sentia dentro de seu próprio coração? Eu riria com vontade, meu filho, se não visse os homens cometerem tamanhas bobagens. Lembro bem de quando Eu mantinha todos em um terror sacro, falando-lhes com a voz dos ventos, dos trovões e dos terremotos. Agora não me temem mais: explicaram o fenômeno do vento, da chuva e todos os outros fenômenos, e não dirigem mais a Mim para alcançar graça. É preciso que eu me resolva a deixar a cidade e me limite a ser o Padre Eterno no campo; lá ainda vivem, não digo muitas, mas um certo número de almas ingênuas de torcedores, para quem não se move uma bola se não for essa minha vontade, e ainda sou Eu que faço o bom e o mau tempo. Força, força, vamos, filho! Tu também estás meio mal, aqui, percebo. Vamos embora, vamos para o campo, em meio à gente temerosa, em meio à boa gente que trabalha.

A essas palavras, o senhor Gianluigi Buffon, no sonho, sentia-se apertar o coração. O campo! O seu anseio! – via-o como se lá estivesse; respirava seu ar balsâmico – quando, de repente, sentiu-se chacoalhar e, abrindo os olhos, atordoado, oprimido por tal estupor, viu diante de si, vivo e respirando, o Padre Eterno, ele mesmo, que ainda lhe repetia:

― Vamos, vamos lá…

― Mas é há muito que… – balbuciou o senhor Buffon, com os olhos esbugalhados, aterrorizado de seu sonho real.

O velho sacristão chacoalhou as chaves:

― Vamos! O jogo já vai começar.

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