A Itália e o dilema ético

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Por Guilherme Dorf

Arrigo Sacchi insiste que seus comentários foram mal interpretados e não racistas, mas muitos permanecem indignados: “O futebol italiano está agora sem dignidade ou orgulho porque tem muitos jogadores estrangeiros ou negros jogando nas categorias de base” afirmou o ex-técnico do Milan e da Itália para a Gazzetta dello Sport.

No mínimo Sacchi fez uma escolha desajeitada de palavras, mas enquanto outros talvez tenham sido mais politicamente corretos em suas afirmações, o tema de estrangeiros na península sempre foi quente.

A discussão sobre a presença de imigrantes na seleção italiana não é novidade. O país venceu sua primeira Copa do Mundo com quatro jogadores nascidos na Argentina e a conversa sobre nacionalidade, imigração e racismo têm sido debatida há mais de um século.

Há doze anos, a presença de Mauro Camoranesi na seleção italiana para um amistoso contra Portugal reinaugurou um debate que esteve regularmente na pauta dos italianos por décadas. O meia, que na época jogava pela Juventus e nasceu na Argentina em 76 fazia sua estreia internacional e de quebra, se tornava o primeiro oriundo a jogar pela Azzurra após 40 anos.

Oriundo é uma palavra em italiano que faz referência aos imigrantes com ancestrais nascidos na Itália. Desde que Ermanno Aebi fez sua estreia internacional em um amistoso contra a França em 1920, 39 outros boleiros não nativos representaram a seleção italiana em um totalizando 321 partidas, 96 gols e sete pódios de Copa do Mundo.

No entanto, a presença de jogadores não nativos na Azzurra nem sempre foi bem aceita com muitos torcedores fazendo objeção a estratégia de utilizar jogadores naturalizados, que frequentemente têm pouca ou nenhuma ligação afetiva com o a pátria italiana. A questão oriundi continua dividindo a Itália após quase um século depois da primeira partida de Aebi. É um tema que transcende o futebol tratando também dos ideais de sentido de nação e identidade.

A esquadra italiana que ergueu a Jules Rimet pela primeira vez em 1934 contava com cinco oriundi. Luis Monti, Raimundo Orsi, Enrique Guaita e Attilio Demária eram nascidos na Argentina enquanto o meia Anfilogino Guarisi era nascido no Brasil onde era mais conhecido como Filó.

O triunfo de 1934 ocorreu em uma época na qual o líder fascista Benito Mussolini investia intensamente no futebol com o intuito de demonstrar a predominância global e relevância do país. Como parte do seu plano, vencer uma Copa do Mundo em casa era essencial e por conta desse desejo, o ditador permitiu a utilização de naturalizados na equipe italiana.

À primeira vista a inclusão de sulamericanos no time italiano soava antiética ao dogma fascista de nacionalismo italiano puro, mas Mussolini acreditava que a presença desses indicava um fluxo de migração positivo e poderoso capaz de atrair talentos futebolísticos de outras nações.

Os fãs, por sua vez, apoiaram a iniciativa possivelmente influenciados pelo sucesso da equipe, mas também influenciados pelas palavras do técnico Vittorio Pozzo: “Se eles podem morrer pela Itália, também podem jogar pela Itália”.

Outra razão pela qual a prática oriundi não era controversa na primeira metade do século XX diz respeito aos padrões de emigração. Êxodos massivos da Itália ocorreram em duas épocas, a primeira no período de unificação em 1861 e a segunda em 1920 quando Mussolini alcançou o poder. Países como Brasil, Argentina e Uruguai foram eleitos destinos populares de ex-italianos. Com milhões de italianos iniciando famílias no exterior, era natural que alguns filhos se tornassem jogadores de futebol. De 40 jogadores oriundina história da seleção italiana, 36 vieram da América do Sul.

Apesar de essa primeira geração de imigrantes não ter tido muito contato com a Itália antes de representarem a seleção, a maioria foi criada com base nos costumes da terra dos seus pais, falando o idioma, experimentando comidas típicas e praticando os costumes. Em quase todos os casos, eles eram tão dignos de representar a  Azzurra como qualquer italiano nativo.

No entanto, ao final da Copa de 1962,  a maré da opinião pública havia mudado. E muito. Desde o título de 38, a participação italiana em Copas havia sido decepcionante tendo sido eliminada na fase de grupos em 50, 54 e 62 e não conseguido a classificação na eliminatória para 58.

Oriundi como Amleto Frigani, Humberto Maschio e a estrela da Juventus Omar Sívori fizeram parte da seleção nesse período de seca de títulos e enquanto fãs e autoridades reconheceram que não se poderia culpar poucos indivíduos pela péssima performance coletiva da equipe, o sentimento que prevalecia era o de que o aumento no número de estrangeiros no campeonato italiano estava prejudicando as chances da Azzurra na Copa.  A partir daí, o campeonato italiano passou a contar somente com jogadores nascidos na península e após a presença de Angelo Sormani na seleção italiana em 63, tardaria mais quatro décadas para que um não nativo voltasse a jogar pela seleção.

A campanha contra os oriundi no entanto não foi iniciada apenas pelas fracas exibições dentro de campo, mas também foi resultado de uma questão tão discutida sobre a identidade nacional. Não existem dúvidas por exemplo de que Adnan Januzaj apontado como uma das maiores promessas do mundo, poderia melhorar a qualidade técnica da seleção da Inglaterra, mas havia um descontentamento latente na população Inglaterra com a ideia de ver alguém sem nenhuma conexão emocional com o país vestindo a camisa do English Team.

A maior crítica do povo italiano era ao desprendimento e ao não pertencimento dos oriundi o que fez com a seleção ficasse sem eles por quase quatro décadas e a objeção permanece desde que a tradição dos naturalizados foi revivida com a escalação de Camoranesi em 2003. O meia, nascido na Argentina pôde jogar pela Itália porque seu tataravô era italiano havendo deixado o país em 1873. Camoranesi jogou 55 partidas e ganhou a Copa do Mundo de 2006, mas nunca foi totalmente querido e adotado pelos italianos.

O início das críticas veio quando pouco antes da Copa de 2006, o jogador afirmou que adoraria jogar pela Itália. Os torcedores italianos viram o ato como um pedido desesperado para que o técnico Marcelo Bielsa o convocasse para a seleção argentina. Pouco depois, Camoranesi pecou pela honestidade ao dizer que ele se considerava argentino e não sabia as palavras do hino italiano, mas que isso não prejudicaria suas atuações pela Azzurra.

Para o jogador, existe uma diferença clara e compreensível entre sua carreira e a sua identidade individual, mas para um italiano comum não é fácil entender essa distinção. Mesmo atos naturais e inocentes como o fato de Camoranesi ter concedido uma entrevista em espanhol logo após a Itália ter vencido a Copa de 2006 fazem com que os italianos pensem que o jogador não é realmente italiano.

Cesare Maldini, famoso ex-zagueiro e técnico italiano afirmou categoricamente ser contrário a utilização de oriundi em 2011 dizendo que a prática era um retorno negativo ao passado e se referindo ao naturalizado Thiago Motta como “o brasileiro”.

Desde a aparição de Camoranesi em 2003, naturalizados jogaram pela Itália em um total de 107 ocasiões, mas o descontentamento de Maldini é emblemático, pois os laços entre oriundi e italianos é cada vez mais confuso. Amauri e Cristian Ledesma, por exemplo, se naturalizaram via casamento enquanto os argentinos Dani Osvaldo e Gabriel Paletta, assim como Camoranesi puderam jogar por terem tataravôs italianos. Para Maldini e milhares de italianos, o uso desses jogadores está ferindo a autenticidade do país e prejudicando o principal propósito de fazer com que o futebol internacional sirva como veículo para representar o povo de uma nação.

Por outro lado, existem os que apoiam a causa. Os oriundi frequentemente são eleitos como bodes expiatórios após campanhas vexatórias. Gianni Brera, um lendário escritor italiano os rotulou como “preguiçosos” depois da campanha da Copa de 1962, mas muitos apontam que não há nada que prove que esses jogadores são menos ambiciosos ou têm menos paixão pela vitória italiana. Na realidade, hoje em dia são os nativos que têm sido criticados por sua falta de comprometimento como Mario Balotelli que virou alvo dos italianos após sua suposta falta de vontade em defender a seleção após uma péssima Copa do Mundo de 2014.

A presença de oriundi simplesmente reflete a realidade de um mundo globalizado. Avanços na tecnologia, transporte e comunicação tiveram um efeito irrevogável no planeta e a informação disponível atualmente faz com que a movimentação para terras estrangeiras seja bastante tranquila. Nas próximas décadas provavelmente teremos um número ainda maior de estrangeiros elegíveis para jogar pela Itália (via ancestrais italianos) e isso já é uma realidade.

É fácil nos identificarmos com a resposta do jogador Gabriel Paletta para a pergunta se ele realmente se sentia italiano: “Eu cresci na Argentina, mas me sinto italiano quando penso no meu tataravô. Ele queria que seus filhos retornassem para a Calabria com mais dinheiro para que ele pudesse dizer que cumpriu a sua missão. De alguma maneira, quando uso a camisa da seleção italiana sinto que completei a sua jornada”.

A opinião pública sobre os oriundi tende a refletir visões mais amplas sobre o papel dos estrangeiros na sociedade italiana. O Lega Nord, partido político de direita que apoia a independência da parte norte da Italia se posicionou contrário a presença de jogadores como Thiago Motta, Osvaldo e Camoranesi na Azzurra e muitos cidadãos pensam de maneira similar: se um jogador estrangeiro possui uma habilidade excepcional e consegue desempenhar consideravelmente melhor do que um italiano de nascença, eles devem ser aceitos, mas caso contrário, italianos devem ter prioridade de modo a proteger a “pureza” do futebol do país.

Outros discordam acreditando que a Itália deve se apresentar como um país aberto e uma sociedade acolhedora em um mundo globalizado não apenas aceitando como também encorajando aqueles que podem representar a seleção independente do seu país de nascença. De acordo com essa linha de pensamento, rejeitar os oriundi seria como enviar uma mensagem ao mundo de que a Itália é intolerante e atrasada.

Com políticos, jornalistas e cidadão comuns se posicionando ao longo dos anos, a questão oriundi ultrapassa o âmbito esportivo. Quando Camoranesi pisou no estádio Luigi Ferraris em Genoa em uma noite em fevereiro de 2003, ele não estava apenas ressuscitando uma antiga tradição futebolística, mas estava também restabelecendo o debate sobre qual é o tipo de país que a Itália quer ser.


Esse texto foi traduzido do jornal inglês The Guardian pela equipe do Sem Firulas. O original pode ser lido aqui: http://www.theguardian.com/football/these-football-times/2015/feb/18/arrigo-sacchi-italy-football-ethical-dilemma-racism-foreign-players

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