Ser feliz era isso

Want create site? Find Free WordPress Themes and plugins.

Por Victor Faria

Naquela tarde abafada de janeiro Eduardo resolveu sair para caminhar. Não havia compromissos para o dia. A liberdade descompromissada lhe causava um ligeiro desconforto. Em dias como esse costumar exercer seu ofício, hábito e necessidade, mas optou por deixar seus escritos pra mais tarde.

O clima agradável oferecia aos transeuntes uma paisagem exemplar. Tinha prazer em observar as pessoas, notar a cadência de certos gestos, os contrastes, as repetições dos passos e suas originalidades. Um novo tipo de coreografia encenada em improviso.

Não exigia qualquer tipo de plano, rota, direção. Era um homem à deriva. Em meio aos outros deixou-se guiar por eventualidades, impressões e curiosidades. Sentia-se encantado pela possibilidade de uma segunda vida, uma forma diferente de se encontrar. Um percurso distante de qualquer expectativa cotidiana. Não estranho o acaso dos passos o levou diretamente ao bairro de sua infância. Naturalmente sempre retornamos ao lugar de nossos primeiros desenganos.

Ao passar em frente à vitrine de uma livraria retomou suas aflições de menino. Não possuía dinheiro para comprar os livros que desejava, em casa havia somente os chamados best sellers, favoritos de seus pais, e por isso dependia do empréstimo de livros de amigos com semelhante gosto literário. Gabo, Cortázar, Llosa.

Não resistiu ao desejo de compensação, reparação, e entrou para comprar um livro. Buscava algum lançamento de Laura Restrepo ou Juan Villoso, mas antes que pudesse chegar à prateleira notou um livro seu nas mãos de uma jovem. Gostava de saber o que os leitores achavam de seus livros, se gostavam. Um encantamento primário, básico e previsível.

Convidou a menina para um café, suco ou coisa assim, e fez questão de pagar pelo livro. Ela aceitou, mais por necessidade do que por capricho. Saíram da livraria e já na primeira esquina notaram o que parecia ser uma discussão conjugal. Sem percebem os dois pararam, observaram juntos cada movimento, fala, indignação. Apesar da distância ninguém conseguia partir. Ela com as mãos junto ao rosto, em soluços e pranto, bradando pra ele nunca mais voltar. Ele com a camisa de Ricardo el Bocha Bochini num dos ombros, explicando que era dia de jogo, mesmo que amistoso, e que de maneira algum poderia o Rey de Copas abandonar. Era possível observar ambos como escravos de suas paixões. Em geral o ser humano possui uma tendência à insatisfação, à ansiedade e angústia.

Atravessaram a rua deixando para trás o casal e o pequeno público que tudo assistia. Entraram no café mais próximo. Eduardo preferia o balcão, mas deixou-se acompanhar pelo gosto da jovem. Nas mesas há mais espaço para ficar sozinho, ela dizia. Acomodaram-se e por um bom tempo falavam sobre brevidades. Somente quando ele disse ser o autor do livro é que se apresentaram. Mesmo dizendo que não havia lido nenhum livro dele, pediu que fizesse uma dedicatória.  Seu nome era Sofia.

Pediu que fizesse a dedicatória enquanto se dirigia ao banheiro, era o mínimo de privacidade necessárias. Ao pegar a bolsa deixou cair, sem notar, o que parecia ser uma fita K-7. Nela havia as inscrições Con todo afecto – A. Apo. Não pode deixar de se emocionar.

Ao retornar a mesa, Sofia percebeu o escritor admirado e com os olhos vidrados em sua relíquia. Quando indagada sobre a fita, respondeu ser esta a única recordação de seu pai, esquecida antes de sua partida. Guardava com a intenção de um dia encontrá-lo, esse era sua trunfo, sua certeza, sua intimidade.

Eduardo não se conteve e pôs-se a chorar em frente dela. A ocorrência de tal coincidência não o incomodava, sabia que bastava um simples detalhe para que as conjecturas não mais se alinhassem, para que todo o enredo desmoronasse. Sabia ter que tomar a decisão certa. Era a primeira vez que se sentia personagem de sua própria vida, como se habitasse sua forma mais real de criação. A ficção como obra de um acaso e fonte de um destino.

O café, Sofia, o encontro, tudo era parte de uma história já contada. Particularmente semelhante ao que já fora descrito por ele. Os nomes, o pai, a busca. Sem maiores explicações Sofia rapidamente pediu licença e retirou-se, tomou das mãos dele o livro, em tempo de ter escrito somente seu nome, e saiu em disparada. Eduardo não quis ir atrás da jovem. Ainda inebriava-se das eventualidades.

Voltou pra casa em passos curtos, sem reparar em novas cenas. Pensava em todo o ocorrido, sabia que se sua a história, haveria melhores conjunções, ligações, talvez algumas pistas. Um outro relato antes mesmo das conclusões que precedem o fim. Conseguiria sozinho. Mas não era o caso. Nessa história em particular havia de ser coadjuvante, a continuação seguiria os passos de Sofia e o encontro com o pai. Na obra seu papel é secundário por destino, por esquecimento ou pela condição de ser somente um escritor e nada mais.

—————————

Ouçam a última edição do Conexão Sudaca, que contou com a participação generosa de Eduardo Sacheri

Did you find apk for android? You can find new Free Android Games and apps.

Posts Relacionados

Deixar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode usar algumas tags HTML:

<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>