Um fio de cabelo

 

Eu sabia que um dia ele chegaria. De certas coisas não dá para correr. Principalmente pra gente que faz parte da parcela masculina do que chamam de humanidade. O tempo – esse danado que não para quieto – é implacável. Tudo o que nos está destinado em vida virá. Não tenha dúvidas. Na calada da noite, num piscar de olhos, devagar ou de supetão, sempre há de chegar as tais marcas da idade.

A genética me favoreceu a driblar o tempo. Toco y me voy há quase três décadas e meia enfiando a bola por debaixo das pernas de Cronos, mas o zagueiro brucutu de traços gregos me acertou um carrinho por trás no último final de semana e a contusão só foi sentida no dia seguinte. Porém, teimoso que sou e não botando a culpa nos signos, acredito que homem do tempo não foi o responsável pelo meu primeiro cabelo branco.

Dia de muito é véspera de nada. Mais do que um clichê, verso dos Originais do Samba e um ditado português, essa frase define o que foi um sábado maravilhoso numa cidade de interior paranaense que antecedeu um domingo daqueles em que o sol queima o rosto e o vento frio atravessa casacos, um moletons, a camisa do seu time de coração e rasga a pele.

Na segunda entendi que não foi do deus do tempo o causador do meu primeiro pelo sem pigmentação. Talvez o sentimento de raiva, aperreio, ou algo que o valha mereça tal condecoração. Mas como cético que nem eu acredito que sou, também não vou colocar a responsabilidade nas costas de Erinies, o senhor da fúria. Em homenagem ao verdadeiro causador desse fio alvo, batizei-o de Alan Viera, lateral do meu combalido Santa Cruz. Ambos, atleta e cabelo, se parecem muito. Apareceram do lado esquerdo, estão isolados e me fazendo raiva.

Raul Holanda, parceiro de bancada de Baião de Dois e companheiro de viagem ao Sul do país, é testemunha da minha apreensão pré-jogo e da minha melancolia quase catártica após o apito final que só ouvi quando estava fora do estádio. Além de uma ressaca não etílica, um cabelo branco foi o que trouxe na bagagem do ônibus-leito. Sim, caro leitor, é uma baita frescura metrossexual esse meu papinho. Assumo. Mas não ter cabelos brancos era uma das coisas mais legais para se vangloriar entre os amigos. Ai de mim, Grecin! Velhos eram eles, eu continuava sendo o balzaquiano de cabeleira totalmente negra e que continua andando pessimamente de skate. Esses 14 anos de idade que tento aparentar não vão embora há 21.

Até meu irmão, oito anos mais novo que eu, tem as têmporas em neve. Lembro que meu pai demorou muito pra ter cabelos grisalhos. Nas minhas contas infantis acredito que ele superou a barreira dos 40 sem uma única mancha branca em cima a cabeça. Eu queria ter chegado lá e falhei miseravelmente. A culpa é sua, Alan Vieira. Escrevo essa frase olhando o Alan que está na minha costeleta. O que jogava (?) no meu time pretendo esquecê-lo.

De onde eu venho tenho um dito que afirma que há quatro coisas que virão para homem de forma inevitável pelas mãos do capetinha da ampulheta. A visão vai começar a falhar, a barriga crescerá, o cabelo embranquecer e logo em seguida, na maioria dos casos, cair. Sou míope desde os 12 anos, a barriga já deu aquela inchada logo após o primeiro casamento, Alan, repito, está aqui do lado esquerdo da minha face. Enquanto a última etapa não chega, sigo pendurando esses dreads na cabeça. Mas tendo em vista a genética da família, a careca, no melhor estilo São Francisco de Assis, está vindo. Que demore.

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Morar sozinho não é tão bom assim

Eu tinha o objetivo de nunca começar um texto com a expressão “na minha época…”. Eu também almejava sair da casa dos meus pais ainda quando fosse muito novo. A primeira meta continuo conseguindo, mesmo quase cometendo esse pecado pessoal no início dessa crônica. Também alcancei a segunda, mesmo que isso tem me custado muito da minha sanidade e poucos arrependimentos.

Com vinte e bem poucos anos peguei as minhas mudas de roupa, devolvi as chaves pra minha mãe, fechei a porta e não olhei pra trás. Não tem nenhum drama aqui. Segui todos os padrões cunhados décadas atrás. Tinha um apartamento financiado, uns estudos concluídos e um casamento a se constituir depois de anos de namoro e noivado. Se isso é o sonho da classe média sobre constituição da família tradicional brasileira e faz parte da formação de um cidadão de bem, eu cumpri todos os protocolos. Em tempo: Deus me livre ser um cidadão de bem.

Convites, igreja, festa, lua de mel, brigas, discussões de relacionamentos e divórcio. Depois de tudo isso num curto espaço de tempo, lá estava eu morando sozinho pela primeira vez numa caixa de concreto de 60 metros quadrados. A partir daí algumas lições foram aprendidas na marra e outras maravilhas foram acontecendo. Mas não se iludam, os perrengues são bem maiores, e mais constantes, do que as glórias.

Desde o período descrito acima até hoje já dividi o teto com mais pessoas do que os dedos de uma mão podem contar. Atualmente, após mais de três décadas fazendo peso em cima da terra, moro pela quarta vez acompanhado de ninguém. Nesses momentos de solidão habitacional você descobre que domingo é o pior dia para não ter ninguém para compartilhar o sofá.

O primeiro dia da semana é rotina. Acordar de ressaca, pedir o almoço, dormir na rede, acordar no final do primeiro tempo do jogo das quatro na TV, algum filme (atualmente Netflix, mas já foi DVD), final do Faustão, o que sobrou do almoço como jantar, gols da rodada no Fantástico e lá se foi o dia do Senhor e do almoço de família. Segunda-feira já chega chutando a bunda e te expulsando do ninho.

Ni Brisant, poeta e camisa 9 dos versos, tem uma lista extensa sobre as maiores dificuldades de morar só. Inclusive fazer listas é um desses malefícios. Mas ele lembra também de um específico que pra mim é prova real que o Inferno está localizado no espaço onde vive apenas uma única alma. Ficar doente e não ter a quem recorrer. Isso é horrível e não desejo essa praga nem para um eleitor de Bolsonaro.

Mas tem um outro drama que, vez ou outra, me dá uns petelecos no cérebro. E se eu tiver uma parada cardíaca durante o sono, quanto tempo vai demorar para alguém dar falta de mim? Quem vai arrombar a entrada do lar e me vê petrificado em cima do colchão? Não avisei a ninguém que quero metade das minhas cinzas no mar de Candeias e outra metade no gramado do Arruda.

Só aqueles que tem a certeza da ausência de vida humana do outro lado da porta sabem o desespero que é colocar as mãos no bolso e perceber que deixou as chaves em lugar desconhecido. A angústia e obrigatoriedade de passar o tempo escutando vizinho ou porteiro do prédio dando mil dicas para que você não seja burro ou displicente o suficiente para que algo parecido não ocorra outra vez.

Não vou me ater aqui aos serviços domésticos. Isso faz parte da parte boa. Limpa quando quiser, sem ter ninguém na sua orelha, e conclui no seu tempo. Qual o problema se a faxina de um kitnet durar uma semana? Não ter que dar satisfações a quase ninguém sobre a hora que sai ou que chega é uma das poucas vantagens de ter o eco das paredes como companhia dentro de casa. Mas é pouco, muito pouco, para berrar aos quatro ventos a alegria de uma falsa independência.

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Acabou a discussão de bar

Certas coisas não estão em tratados, convenções ou documentos oficias, mas são regras e direitos universais. Para boa convivência entre os iguais. Não é preciso uma instauração jurídica, ou algo que o valha, porque essas tais coisas simplesmente são. Estão por aí desde que chamaram esse mundo pelo nome e não há problema nenhum nisso. Ou há, a partir do momento que querem mudar essas circunstâncias.

Uma desses cânones da humanidade é o direito da dúvida, mas parece que atualmente ninguém quer se valer dele. Qual o problema de não precisar saber de tudo? Já não se tem mais aquele prazer incômodo de ficar com a pulga atrás da orelha. Aquele pé atrás hoje nem mais dá aqueles chutes incertos sabendo-se lá onde vão parar. O que vale agora é cravar com a sola e afirmar com bestas convicções.

A sombra da dúvida diminui com o passar do tempo e quem quer ter o prazer de não saber é bombardeado a cada dia com as certezas que ficam em seu encalço. Não adianta fugir. A culpa é dos novos tempos. Qualquer informação ao alcance de mão. Não sabe? Esqueceu? É só conferir se a conexão do seu 4G está ok e… voilà! Ali está o link que você precisava e acabar com ansiedade que o afligia para saber se o ator daquele filme era o Morgam Freeman ou Samuel L. Jackson.

Longe de mim querer ser saudosista, tecnologia está aí para nos ajudar e viva o avanço da ciência, mas tenho lembranças açucaradas das boas brigas de bar. De um lado, cheio de razão nenhuma, o barrigudo de bigode bradava: “Aquele gol foi do Silas Lenhador”. Na outra ponta da mesa o magrelo de finos óculos e caneta no bolso da camisa soltava: “Que nada! Você está falando merda. O gol foi do Mimi, e digo mais, aos quinze do segundo tempo”.

Estava criado o impasse e dali só sairiam depois do veredicto dado por, nada mais, nada menos, do que Gomes, o juiz de paz, que quando não estava resolvendo esse tipo de arenga voltava as funções de garçom e enchia o copo dos dois brigões de boca. “Autoridade, diz para esse bêbado que ele está todo errado e confirma o que eu disse. O gol foi ou não foi do Mimi?”

E assim as coisas eram resolvidas. O garçom pegava conversa de meia orelha e dizia que um dos dois estava errado, geralmente o mais nervoso, para que aquela discussão rendesse muito ainda e aumentasse o tamanho da conta. Na semana seguinte, ou na mesa ao lado, haveria um quiproquó parecido e todo mundo voltava com uma dúvida diferente para casa. “Acho que ele pode ter razão. O Silas Lenhador estava jogando muito naquela época”.

Duvido um imbróglio desse acontecer em dois mil e esses anos. Segue a cena. @HumansontheWall segura seu chopp IPA enquanto espera seu hamburguinho artesanal ser servido. Seu amigo @ThePriceDark chega e senta na cadeira de praia que está ao seu lado instalada na calçada em frente ao bar que está uns 180 km do mar mais próximo. Com os olhares fixados nas telas daquilo que eu dia chamaram telefone celular, um deles indaga:

Tá sabendo que o ator fulano vai ser o protagonista daquela franquia iraniana?” “Não vai ser o fulano, vai ser o Beltrano”. “Tem certeza?”. “Não, pera. Bro, qual a senha do wi-fi?” O garçom aponta uma sequência de números na parte de baixo do cardápio feito de papel reciclado. Em menos de um minuto. “Tá vendo, olha aqui, é o Beltrano mesmo, te falei”. Fim da dúvida e Bro, o garçom, chega com o hamburguinho.

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