Crônicas de uma Mostra

 

Na sala lotada, à meia luz, as pessoas estão inquietas; o burburinho vai aumentando aos poucos, assim como os olhares furtivos para os relógios. A sessão já está atrasada em aproximadamente 20 minutos. Ainda não há nenhum sinal de vida por parte da organização do evento, o que causa apreensão, mas também estimula os mais sagazes a levantar hipóteses: ‘se ainda não falaram nada, é porque o filme vai passar. pode atrasar, mas vai rolar’, atesta um otimista; pelo lado contrário, um quarentão com ares de especialista garante: ‘pra ter atrasado tanto deve ser algum problema técnico grave’. Interrompendo os raciocínios, um senhorzinho grita e aponta para os ponteiros de um relógio inexistente em seu próprio pulso. Agitação. ‘Parece que vão dar uma posição oficial’, alguém sugere quando uma mulher com a camiseta do festival adentra a sala e se posiciona logo abaixo da grande tela.

Cenas como essa sempre fizeram parte da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mas há quem veja nisso um dos charmes do maior festival de filmes do país. Dos problemas técnicos e atrasos vem algumas histórias marcantes que os cinéfilos levam consigo e repassam a outros entusiastas – entre risos e gargalhadas – enquanto comentam as escolhas de programação um do outro. “Lembra daquela vez que a senhorinha gritava que deviam passar o novo do Godard sem legendas mesmo – afinal, ‘quem aqui não fala francês’?”; “e aquele filme chinês interminável em que a gente dormiu tanto que até esqueceu onde estava?”. Os casos e piadas internas são tão comuns aos cinéfilos que conversam nas filas quanto os filmes de Amos Gitai na programação. Ao longo de 42 anos de história, o evento fez com que alguns realizadores de renome internacional virassem figura carimbada pelas telas da cidade; o cineasta israelense consta nessa lista junto a diretores premiados como Lars Von Trier, Werner Herzog e Fatih Akin. Os ícones pop Quentin Tarantino e Pedro Almodovar participaram de sessões especiais e homenagens. Há também os nomes de difícil pronúncia, como Nuri Bilge Ceylan, Jia Zhangke, Apichatpong Weerasethakul, que fazem a cabeça do público alternativo.

Se você é dos que assistem a uma quantidade razoável de filmes no evento, já deve saber que verá alguns filmes ruins – e um deles provavelmente entrará na sua lista pessoal de piores longas já feitos. Todo mundo passa por isso, fique tranquilo. Serão as exceções. Em geral, o festival traz o que há de melhor e mais inovador na produção mundial, acompanhado de retrospectivas e grandes exibições de clássicos restaurados. Uma boa parte das produções terá muita dificuldade em ser distribuída comercialmente, e algumas pérolas não poderão ser encontradas nem mesmo na internet. Todo aficcionado da mostra tem uma pequena obra prima obscura pra chamar de sua.

Quem embarca nessa para valer pode ser facilmente reconhecido pelas ruas do circuito Augusta/Paulista. Uma credencial dependurada no pescoço, catálogo debaixo do braço, um bloco com a programação anotada, talvez algumas olheiras, sempre olhando para o relógio e preocupado com atrasos – eles podem comprometer o próximo filme e bagunçar a programação. Isso seria um desastre. Programação de mostra é coisa séria! O cinéfilo que se preze gasta horas montando a sua, e se gaba das melhores escolhas, dos achados, e até dos encaixes arriscados entre uma sessão e outra. Sair da Reserva Cultural e chegar ao Itaú da Frei Caneca em 10 minutos parece um desafio válido para ver o último da nova onda romena e emendar o documentário grego vencedor de uma mostra paralela do Festival de Cannes. Saber recitar os prêmios que um filme já ganhou conta pontos importantes, fique atento!

A cada ano tudo recomeça, e os cinéfilos, de credencial da Mostra em mãos, renovam seus votos: ‘esse ano vou ver mais filmes’; ‘dessa vez vou arriscar filmes mais obscuros’; ou ‘preciso ver mais longas da programação nacional’, como é o caso para a equipe do Central Cine Brasil. A Mostra também se renova e resiste, mesmo com cenários econômicos e políticos adversos, ou após tragédias pessoais, como a morte de seu criador, Leon Cakoff, ocorrida em 2011. Neste ano, o festival exibirá 336 títulos em cinemas, centros culturais e museus espalhados por toda a cidade. Entre 18 a 31 de outubro, não conte com os cinéfilos de São Paulo para muita coisa. Eles devem estar – muito bem – ocupados.

Posts Relacionados