Gabriel e a Montanha desembarca em terras brasileiras

Com estreia agendada para 2 de novembro, “Gabriel e a Montanha” tem feito das sessões na Mostra Internacional de São Paulo e no Festival do Rio um termômetro para testar a receptividade do longa em seu país natal. Já consagrado no Festival de Cannes – onde foi eleito a revelação pelo júri – e com uma surpreendente bilheteria em solo francês – onde estreou em circuito comercial e passou dos 75 mil espectadores –, agora o filme aposta no bom e velho boca-a-boca para tentar alavancar a bilheteria. Se depender das reações observadas nas sessões até o momento, há potencial para que o longa desponte como um sucesso independente e conquiste seu espaço entre o público jovem e alternativo; há quem o aponte como um Into the Wild tupiniquim ou até questione o motivo do longa ter sido preterido na disputa da vaga ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

O jovem diretor Fellipe Bragança tem uma relação bastante pessoal com o assunto do longa. Gabriel Buchman, personagem da história real que inspira o filme, foi seu amigo durante a faculdade. Embora não fossem íntimos, tinham convívio próximo; cursavam economia juntos na PUC-RJ, até tomarem rumos distintos na vida. Fellipe largou o curso para fazer cinema em Nova Iorque, enquanto Gabriel partiu para um mochilão pelo mundo. Foi a notícia de sua morte que chamou atenção de Fellipe, que fez o filme como uma forma de se reaproximar do amigo perdido. Em seu segundo longa, o cineasta demonstra ainda mais maturidade que em Casa Grande, seu surpreendente trabalho de estreia na direção.

No processo que empreendeu em busca de seu amigo, Fellipe contou com apoio intenso de familiares e amigos de Gabriel; sua mãe, irmã e namorada, por exemplo, abriram todos seus arquivos, correspondências e fotos para que o cineasta pudesse compreender melhor o personagem que retrataria. Pessoas que conviveram rapidamente com Gabriel durante sua viagem também foram encontradas para depoimentos ou até mesmo para reencenarem seus papéis no filme, numa opção ousada e bem sucedida do diretor. Os nativos estão bastante à vontade interpretando a si mesmos, resultando em personagens carismáticos e intrigantes. Em momento algum o filme é prejudicado pela opção de trabalhar com não-atores. Pelo contrário; a presença de pessoas e locações que verdadeiramente fizeram parte da história de Gabriel acrescenta uma camada extra de dramaticidade. Até mesmo suas roupas e objetos pessoais foram utilizados nas filmagens, demonstrando cuidado e comprometimento com o personagem.

Tal entrelaçamento com a realidade e com o documental poderia ter sido um tiro no pé, mas a sobriedade com que Fellipe conduz a narrativa consegue evitar o exagero no sentimentalismo. De início tem-se a impressão de que a proximidade tão grande do cineasta com o tema transformaria o Gabriel da ficção em um homem santo e iluminado, sem defeitos. Entretanto, com o desenrolar da trama e, principalmente, com a entrada de sua namorada, Cristina, na história, surgem conflitos interessantes. Seu jeito cheio de si, confiante – ou até convencido demais, dependendo da interpretação – é bem característico dos que se lançam nesse tipo de aventura. É preciso uma dose de egoísmo e muito amor próprio para uma jornada do tipo. Traços como esse estão presentes no personagem de Gabriel, vivido de maneira arrebatadora por João Pedro Zappa, e são revelados em suas discussões com Caroline Abras, que também merece destaque no papel de Cristina. São as cenas em que ambos discutem que carregam as maiores complexidades do filme, como quando Gabriel frustra o maior desejo de Cristina em toda a viagem apenas para mandar um e-mail caprichoso para a irmã; ou quando ele minimiza suas realizações e ambições acadêmicas.

Ao longo dos quatro países por onde acompanhamos Gabriel sua ousadia e confiança só vão crescendo. O mundo parece estar a seus pés; sua empatia quebra qualquer gelo, abre a porta da casa de estranhos, conquista um lugar à mesa e um cantinho para dormir. São estradas, trilhas, escaladas, histórias, que, de forma traiçoeira, vão conduzindo Gabriel a armadilha de autoconfiança que acabará por condená-lo. Logo ele, que em sua obsessão por “viajar como um local” não aceitava ser ludibriado por guias oportunistas ou ciladas para turistas em restaurantes ou comércios, acaba traído por seus próprios passos.

Em “Gabriel e a Montanha” faz-se verdadeira a premissa de que o importante não deve ser, necessariamente, o início ou o fim, mas sim a jornada. Desde a primeira cena, – ou até antes dela, por se tratar de uma história conhecida – sabemos qual será o desfecho. Mas são as descobertas e revelações do caminho que importam; não somente a trajetória de Gabriel é importante, mas também as trajetórias que se cruzam com a sua; as vidas que são afetadas por sua passagem; os países que o vemos atravessar e seus entornos. As paisagens magnificamente captadas pelas lentes do fotografo Pedro Sotero – o mesmo de “Aquarius” – e as diferentes culturas pelas quais passamos também são parte crucial dessa jornada.

Se hoje “largar tudo e viajar o mundo” é um sonho de consumo já enlatado e vendido para jovens endinheirados com a mesma naturalidade que, nos anos 90, se vendia o carro do ano, em 2009 a trajetória de Gabriel ainda era uma coisa de maior ineditismo, intrigante. As notícias chegavam raramente, normalmente breves, acompanhadas de uma ou outra foto, tudo enviado às pressas de alguma lanhouse precária encontrada pelo caminho. Vemos na tela um tempo em que se sentia mais o peso da distância e a solidão do que hoje, quando é possível compartilhar cada passo em tempo real através de diferentes redes sociais. Há um certo apelo nostálgico nessas imagens. Como parece mais autêntica a experiência de viagem naqueles tempos pré-selfies!

Independente dos resultados de bilheteria, “Gabriel e a Montanha” é mais um grande filme desta safra brasileira de 2017 – um ano marcado pela alta qualidade dos títulos e também, infelizmente, pela pouca receptividade do público. Com raras exceções, até os lançamentos de maior apelo comercial e pensados para serem blockbusters tem encontrado alta resistência para passar dos 200 mil espectadores – número que, em 2016, foi alcançado por 24 longas-metragens. Resta saber se “Gabriel e a Montanha“ também estará fadado a este destino.

 

***Murilo Costa é cinéfilo, cineasta e integrante da bancada do Central Cine Brasil.

Posts Relacionados