Jardim Sete de Setembro – I

por: Luis Santos

A primeira vez em que eu vi um jogo de futebol sabendo mesmo o que estava acontecendo foi com 12 anos. Aquela final do Campeonato Brasileiro. Aquela que fez a gente achar que o Robinho era grande coisa. Aquela mesmo.

Até então, tudo o que eu vivi de futebol foi dentro do meu próprio mundinho. Eu estava vivo durante 12 anos antes disso, e 12 anos é bastante tempo – em termos de futebol, foram 4 copas do mundo. Eu vi a festa do tetra, comemorei o paulista de 98, chorei copiosamente com aquele gol do Petit na copa da França (teria chorado mais ainda se na época tivesse consciência da qualidade do Petit como jogador). Mas em nenhum desses momentos eu estava realmente sentado e assistindo o jogo. O jogo era sempre uma trilha sonora que me ancorava no mundo real, mas eu estava realmente preocupado era com o meu próprio campeonato solitário de futebol de botão.

Eu joguei muita bola na rua na infância (não o suficiente para virar um bom jogador), jogava muito futebol no video-game, organizava campeonatos de futebol de botão em que eu mesmo controlava todos os times. As minhas tardes eram ocupadas por futebol. Sendo assim, como é possível que eu não me lembre dos grandes jogos, dos belos gols e dos craques de antigamente?

Eu me lembro muito bem de ter meus ídolos na época e de invocar seus nomes (e de alguma forma, seu espírito) nas peladas na rua com gol de chinelo. Me lembro de gritar “ROGÉÉÉÉÉÉRIO!” ao fazer as minhas defesas espetaculares no portão de casa.

Mas sabem de uma coisa que eu não me lembro? As chuteiras, os penteados, as capas de revista, os comerciais. Eu não me lembro do mundo do futebol nessa época, e por um motivo bem simples: para nós, crianças moradoras de áreas carentes da periferia, o futebol era um mundo quase de fantasia. Nós não estávamos minimamente preocupados com as especulações de transferência, com os salários milionários ou com os contratos de patrocínio.

Nossas camisas eram falsificações tão grosseiras que a grafia correta de um nome de patrocinador transformava qualquer peça em item de luxo. Jogávamos com bolas de couro sintético, que se desintegravam em 2 ou 3 semanas de asfalto esburacado. Quando um colega aparecia de chuteiras para jogar, ele era prontamente repreendido e forçado a ir até em casa buscar um par de Havaianas. Éramos caras durões. Éramos rigorosos.

O futebol jogado era lindo. Me ressinto em saber que nenhum dos meus vizinhos foi muito longe no mundo do futebol, já que a minha rua teve talento suficiente para conquistar o bi-campeonato do Jd. 7 de Setembro. Éramos todos reis.

O ponto é que éramos todos Ronaldos, Figos, Maldinis, Zidanes e Denílsons (eu tinha um prazer especial em dar botinadas nos Denílsons). Não tínhamos a mesma exigência de hoje, em que uma criança nessa mesma faixa de idade é bombardeada desde cedo com afirmações de que ela não será ninguém enquanto não usar a chuteira x ou y.

Nós não precisávamos do futebol moderno porque o futebol moderno não tinha nada que nos interessasse. Tínhamos tudo o que queríamos ali, no nosso mundo de sonhos alimentado homeopaticamente pelo mundo real do futebol. Construímos esse mundo sobre a nossa realidade de pobreza, de isolamento. Demorávamos 3 horas para chegar ao shopping mais próximo e quando chegávamos lá, víamos apenas vitrines cheias de coisas que nunca compraríamos.

Nenhum de nós foi pego pela ilusão da ascensão social por meio do consumo – aquela que faz a gente acreditar que ter a chuteira do Cristiano Ronaldo te faz próximo de ser tão rico e famoso quanto ele.

O craque hoje é muito mais uma imagem do que um jogador. Na nossa época eram raros os exemplos de jogadores cuja qualidade não fazia jus à exposição midiática. Hoje em dia esta exposição é a regra, mas houve uma época em que nem o próprio Ronaldo era um fenômeno. Ele era só o Ronaldinho, o centroavante dos dentes tortos que dava arrancadas como ninguém.

Ali na rua, todos éramos craques. E não era a nossa vestimenta ou a nossa coreografia de comemoração que nos fazia craques, mas sim o amor irracional que sentíamos pelo que estávamos fazendo ali. Nossos valores foram construídos ali, onde todos nós estávamos no mesmo barco. Todos ali nasceram com a etiqueta do fracasso, mas nenhum de nós sabia disso até então. Nós só queríamos jogar como o Ronaldinho, e não ser como ele.

Mas é claro que a gente cresce, as coisas mudam e de repente passa a ser aceitável que o aspecto mais puro e verdadeiro do futebol seja pasteurizado, empacotado e vendido. Nos tiraram o real para poderem vender o produto Ilusão™, que é quase igual ao real, mas sem a emoção verdadeira.

Se fosse pra viver de ilusão, eu preferia seguir na minha fantasia infantil: a de que não importava o que você tinha, mas quem você era.

Posts Relacionados