No limite entre o bem e o mal

 

 

“Ói, ói o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral” (Raul Seixas).

Este texto é fruto de uma reflexão feita durante minha viagem de Curitiba para São Paulo. São muitas horas sem fazer nada além de ouvir música e pensar, já que não consigo ler dentro de um veículo em movimento. Como sou linguista, não posso deixar de tender uma reflexão sobre problemas da atualidade para a linguística. Portanto, esperem por algo assim. Além disso, já peço antecipadamente desculpas por eventuais erros.

Palavras sinônimas

Existe um princípio – o princípio da economia – que diz que em uma língua natural não há sinônimos perfeitos. Quando duas palavras significam exatamente a mesma coisa, o resultado é que uma delas desaparece da língua. Se duas palavras existem e são sinônimas, elas invariavelmente são diferentes no uso e no significado. Um exemplo clássico que ilustra essa questão são as palavras “bonito” e “belo”. Elas parecem significar exatamente a mesma coisa, mas não o fazem. Você não chega para uma criança que está fazendo arte e diz: “belo, hein?”. Você sabe o que você diz. O belo é mais elevado, mais artístico, ligado ao que é estético. O bonito é mais comum, coloquial. Isso é possível porque uma palavra não tem apenas um significado, ela é uma coleção de traços semânticos e dependem de um contexto para ter sentido. A minha reflexão está embasada nesse fato, de que palavras não significam “uma coisa”, mas sim podem significar várias coisas, apresentarem nuances, faces de uma mesma moeda. Eu gostaria de comparar uma palavra a um átomo: pensamos que são indivisíveis, mas suas partículas – os significados implícitos que ela carrega – nos dizem o contrário. Assim como elétrons de determinados átomos, os significados podem ser compartilhados por palavras diferentes.

Sobre o significado de tolerância

Após minha introdução, fica claro que como “tolerância” é uma palavra, apresenta nuances distintas, significados diversos. Atualmente essa palavra está sendo muito utilizada carregando um traço semântico automático de bondade. A pessoa tolerante está agindo corretamente, com bondade, pensam as pessoas de 2018. Mas será que isso é mesmo verdade? Vamos ao dicionário eletrônico Houaiss (2009) dar uma olhadinha:

“Tolerância
substantivo feminino
1 ato ou efeito de tolerar; indulgência, condescendência
2 qualidade ou condição de tolerante
3 tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo diametralmente opostas às adotadas por si mesmo
4 isenção de norma, de regra geral; licença, dispensa
Ex.: t. de horário
5 quantidade, para mais ou para menos, permitida pela lei no peso ou no título das moedas
6 diferença ou margem de erro admissível em relação a uma medida ou a um padrão
7 Rubrica: farmácia.
fenômeno caracterizado por uma diminuição dos efeitos sobre o organismo de uma dose fixa de substância química à medida que se repete sua administração
8 Rubrica: toxicologia.
capacidade de o organismo suportar doses de determinada substância sem apresentar sinais de intoxicação

Observação: ver sinonímia de condescendência”

Ora, se o dicionário fala “ver tal coisa”, você vai lá e “vê tal coisa”:

“Condescendência:

substantivo feminino
1 ato ou efeito de condescender
2 anuência, assentimento aos sentimentos ou às vontades de outrem
3 conduta que não segue as exigências do dever, da consciência, da honra etc., por transigência, lisonja, temor ou fraqueza; complacência
Ex.: c. com o crime”

Sim, dentro do conjunto de coisas que forma a tolerância, há uma ponta que é condescendência, que por sua vez, já não designa coisas tão bonitas. Às vezes você está sendo tolerante, às vezes você escorregou e caiu na condescendência, mesmo chamando ainda de tolerância – o que você pode fazer, de acordo com o dicionário. Eu quero ir ainda um pouquinho além. Vamos à última entrada de dicionário de hoje, eu prometo:

“Conivência:

substantivo feminino
1 característica ou estado do que é conivente
2 ação do que é conivente
2.1 Rubrica: termo jurídico.
complacência, transigência ou cumplicidade para com falta ou infração de outrem
2.2 Rubrica: termo jurídico.
forma de cumplicidade que consiste em, patente ou dissimuladamente, abster-se de prevenir, impedir, atalhar ou denunciar um delito, de cuja premeditação se tinha conhecimento
Ex.: diretamente ele não é culpado do crime, mas será acusado de c.
3 Rubrica: morfologia botânica.
aproximação de estruturas pelo ápice, sem ocorrer soldadura, esp. de peças florais, que permanecem livres na base

Etimologia: lat. conniventìa,ae ‘indulgência, conivência’, de connivére ‘dissimular, ser indulgente'”

Vejam que tolerância, condescendência e conivência compartilham “elétrons”: indulgência e complacência. Acho que mostrei com dados que não há limites muito bem marcados entre as palavras. O uso delas é escolhido através dos seus traços, mas que às vezes podemos usar tanto uma quanto outra.

O problema é que tolerância, que tem seu traço de bondade, tem sido escolhida para representar a dissimular a conivência. Explico.

Intolerantes à intolerância

Quando se pede uma sociedade mais tolerante, os grupos que propagam certos discursos de ódio se aproveitam de um paradoxo para defender suas ideias. Ou você aceita o discurso misógino, homofóbico e racista, ou você está sendo intolerante e, consequentemente, hipócrita. No entanto, refletindo dentro do ônibus, cheguei à conclusão de que esse é um falso paradoxo. Certos discursos são criminosos, mas ninguém pode ser tolerante a crimes, mas sim conivente. Mudei o tom, não é mesmo?

Esse meu texto ainda é um princípio de reflexão e certamente tem brechas. Por exemplo, para algo ser um crime, dependemos de um conjunto de leis. Mas as leis nem sempre são corretas. Homossexualidade é crime em alguns lugares, no entanto, eu prego a tolerância a esse grupo e não acho que seja conivência. Então temos que estabelecer o seguinte: seu discurso defende que outras pessoas continuem sofrendo? Então você não pede tolerância, pede conivência.

Quando você vir algo racista, homofóbico e misógino, não seja condescendente. Esses discursos não requerem tolerância, portanto você não precisa se sentir culpado nem hipócrita por isso.

 

*Marina Sundfeld é formada em Letras português e alemão pela Universidade Federal do Paraná e tem mestrado na USP. Fã de Pink Floyd.

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