Versões

Qualquer artista ao conceber uma obra deve ter em mente que, uma vez tornada pública, aquela obra deixa de ser sua. Está aberta a interpretações, reinterpretações, versões, confusões e muitos outros “ões”. Em qualquer campo da arte isso se dá, mas especialmente os compositores de música popular devem ter um desprendimento maior em relação às suas crias. Não é tão simples reinterpretar uma peça de teatro, reimaginar um quadro, refazer uma escultura, recriar uma construção, reescrever um livro ou  refazer um filme (sim, eu fui ao Wikipédia pra ver qual era a ordem das sete artes primordiais. Aproveitando, me perdoe a extensão do conteúdo dos parênteses, mas acabei de descobrir que as Historias em Quadrinhos, consideradas a nona arte, são chamadas de Banda Desenhada em Portugal. Genial). Mas, à diferença das outras formas de arte, qualquer um que aprenda o básico de um violãozinho já consegue dar a sua interpretação, mesmo que mequetrefe, para sua canção preferida.

Versões mequetrefes à parte, é bastante comum dentro da música pop que um artista regrave as canções de seus pares. Aliás, ta é bastante comum dentro da música pop que um artista regrave as canções de seus pares lvez seja uma das poucas formas de arte em que pessoas que passam a vida recriando obras alheias tem o mesmo status de quem cria seu próprio trabalho. Podemos pensar em Frank Sinatra como um grande exemplo na música internacional, e Maria Bethânia aqui no Brasil. São artistas gigantescos, mas que não criaram, no sentido estrito do termo, nenhuma, ou quase nenhuma, das canções que cantaram.

Entre as versões, talvez o mais emblemático exemplo de como um artista pode mudar completamente a criação de outro seja a versão que Joe Cocker fez para “With a little help from my friends”, dos Beatles. Segue para quem não conhece a versão original da banda, lançada em 1967:

E aqui a espetacular versão, ou recriação, feita por Joe Cocker e lançada em 1969:

Parece outra música, e um ouvinte desavisado talvez demorasse a perceber que se trata da mesma canção. Mas nem sempre as novas gravações fogem tanto à ideia original. Na maior parte das vezes a melodia básica é mantida, e a mudança se dá mais nos arranjos. Para o estudo de caso aqui pretendido, escolhi arbitrariamente a canção “Don´t think twice, it´s all right”, uma das mais belas músicas de Bob Dylan – o que não é dizer pouca coisa. A canção abre o lado B do disco “The freewheelin”, que o artista lançou em 1963, quando tinha apenas 22 anos. Sua melodia é inspirada em uma antiga canção folk americana, de domínio público. Nada mais justo, já que estamos falando mesmo sobre reinvenções. Ouçamos, primeiro, a versão original de estúdio. Logo abaixo dela está uma tradução, feita com o inglês ameríndio deste que vos escreve, para ajudar àqueles que entendem menos inglês do que eu:

Não pense duas vezes, tá tudo certo

Bem, não adianta sentar e se perguntar, baby
Se até agora você não sabe
E não adianta sentar e se perguntar, baby
Nunca vai dar em nada, de qualquer jeito
Quando seu galo cantar no romper da aurora
Olhe pela sua janela e eu terei ido
Você é a razão de eu estar seguindo viagem
Mas não pense duas vezes, tá tudo certo

E não adianta acender sua luz, baby
Aquela luz que eu nunca conheci
E não adiantar acender sua luz, baby
Eu estou do lado escuro da estrada
Mas eu gostaria que houvesse algo que você pudesse fazer ou dizer
Pra me fazer mudar de ideia e ficar
Mas nós nunca conversamos muito, de qualquer modo
Mas não pense duas vezes, tá tudo certo

Então não adianta chamar meu nome, garota
Como você nunca fez antes
E não adianta chamar meu nome, garota
Eu não posso mais te ouvir
Estou pensando e imaginando, enquanto ando pela rua
Certa vez amei uma mulher, ou uma menina, me disseram
Eu dei a ela meu coração, mas ela queria minha alma (ei, esse é um dos versos mais lindos da música pop!)
Mas não pense duas vezes, tá tudo certo

Até mais, minha querida
Pra onde eu vou não posso dizer
Adeus é uma palavra bonita demais
Então só vou dizer “passar bem”
Não estou dizendo que você me tratou mal
Você poderia ter feito melhor, mas não me importa
Você só meio que desperdiçou meu precioso tempo
Mas não pense duas vezes, tá tudo bem

(Uma coisinha: há quem se diga poeta e que daria o braço esquerdo pra escrever isso que Bob escreveu quando tinha perto de vinte anos. Outra coisinha: o próprio Dylan mudou um pouco a letra quando começou a cantar a música ao vivo, e é essa versão que a maioria dos artista que fizeram covers usaram. Mas as mudanças não são substanciais, e estão em apenas dois versos.)

Nada melhor do que começar esse passeio por Joan Baez, uma espécie de “irmã espiritual” de Bob no começo dos anos 1960. Ambos dividiram palcos, e camas, e eram considerados rainha e rei da folk music. A versão de Baez é delicada como sua voz, e é curioso notar que ela não muda o gênero da musa da canção.

Virginianos adoram ordens cronológicas, então vou fugir dessa armadilha e partir para a versão feita por um dos queridinhos do momento, o inglês Ed Sheeran. O vídeo foi gravado para a TV francesa, e mostra o astro sozinho ao violão, em uma versão bastante parecida com a original. Ele muda um dos versos, e diz “mas você não está me escutando, de qualquer modo”, ao invés de “mas nós nunca conversamos, de qualquer modo”. E também inverte duas estrofes, deixando para o final aquele que eu pontuei como um dos mais belos versos da música pop na tradução aí acima.

Outro que não poderia faltar é Johnny Cash, que ao longo da carreira gravou diversas canções de Bob, sempre usando seu timbre único e trazendo as canções para seu universo. Estilo não falta a Cash, e é algo que muitos artistas passam a vida procurando sem encontrar. A versão está no disco Orange Blossom Special, de 1965.

Voltando aos tempos modernos, a norte-americana Kesha gravou uma versão para um álbum tributo a Bob Dylan, lançado em 2012. Sua interpretação é quase toda à capela, com alguns incursões de teclado e violoncelo. É uma bela versão, embora o choro ao final pareça um pouco cafona.

Com uma pegada mais rock, o vocalista da banda punk Social Distortion gravou a canção em seu disco solo Cheating at Solitaire. Ficou divertido, embora a música perca parte de seu charme melancólico.

Dolly Parton, a grande estrela da música country norte-americana, fez sua versão da música em 2014. Ao contrário de Joan Baez, Dolly mudou o gênero e transformou a “she” em um “he”, além de ter mudado um verso, transformando “certa vez amei uma mulher, ou uma menina, me disseram” em “certa vez amei um homem, mas aquele amor envelheceu”.  A versão é bem animada, na linha do country moderno.

Tem latinidade também nessa história. O norte-americano de ascendência mexicana Trini Lopez, que fez sucesso mundial com a música La Bamba nos anos 1960, também gravou a música com seu estilo bem ritmado – dá até pra tocar em festa de casamento que vai fazer sucesso.

Como curiosidade para os amantes da série The Walking Dead, a canção foi usada em um episódio da sétima temporada, em uma bonita versão em coral, cantada pelos cantores da Georgia State University Singers.

Deixei por último minha cover preferida, feita pelo relativamente pouco conhecido cantor norte-americano Brook Benton e lançada em 1970. Com um arranjo suave, mas presente, com bom uso do orgão e uma voz aconchegante e versátil, Brook fez a versão mais acalentadora de uma canção que é sobre despedida. Um paradoxo que aqui é traduzido em deleite.

Ninguém jamais vai (acho) reescrever “Lolita”, de Vladimir Nabokov. Mas é possível recriar de inúmeras maneiras “Don´t think twice it´s all right”, de Bob Dylan, como pode ser visto aí acima. Cada nova versão traz uma energia diferente, muitas vezes até contraditória ao que o artista original pretendia. Essa é uma das delícias dessa forma de arte que pode parecer superficial para muitos, mas que pode trazer em poucos versos, ou num acorde de guitarra, todos os sentimentos de um romance inteiro. Eu só li Lolita uma vez, mas poderia passar um bom tempo ouvindo a mesma boa canção repetidas vezes. Aliás, acho que vou fazer isso agora mesmo…

 

*Luiz Felipe Carvalho é jornalista, colecionador voraz de CDs e escreve mensalmente sobre música na Central 3

 

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