Tempo da Camisolinha

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Por Victor Faria

A feiura dos cabelos me fez mal. Dentre as experiências de minha primeira infância é minha recordação mais antiga e marcante. Naturalmente havia um medo lancinante de já ter ficado homem naquele tamaninho, um desconforto assustador, a cada impressão no espelho um recomeço de choro.

Meus cabelos eram muito bonitos, dum negro quente sem reflexos. Lembro de uma antiga fotografia apoiada na cabeceira de minha mãe, destruída anos mais tarde com rapidez e polidez envergonhada.  Era já agora bem homem e aqueles cabelos adorados na infância me parecem cada vez mais enganosos. No retrato os traços não eram felizes, um olhar distante e manso, um rosto sem marcas. Bem diferente de meus retratos como jogador e capitão do time.

Naqueles anos até o princípio do regime democrático a memória se constrói confusa e descompassada. A necessidade de parecer crescido diante das circunstâncias, de ser o outro em olhos alheios. A derrota em casa na Copa de 50 e o pranto, afinal. No último e prolongado fim, um chorinho doloridíssimo, perpetuado em ondas de rádio, um desespero desprendido de tudo, uma fixação obstinada em não querer aceitar o óbvio, o consumado.

E o meu passado se acabou pela primeira vez. De partida de Taubaté, só ficaram como recordações desagradáveis dele, as camisolinhas. Foi dentro delas, camisolas de tecido pueril, que parti com os meus para Santos.

A casa em que estávamos não ficava na praia exatamente, mas numa das ruas que a ela davam e onde operários trabalhavam diariamente no alinhamento de um dos canais. Ali vivemos nossos primeiros anos, um lar improvisado cheio de deficiências e que em nada lembravam minha cidade natal.

No começo não me interessei pelo mar, e tanto, que nem as caminhadas com outros jogadores me interessavam. Os outros que fossem passear, eu ficava ali no gramado da Vila, ao fundo de algumas árvores frias num capim quase amarelo e fugidio, treinando. Nas conversas com as formigas é que revelava meu grande sonho.

Vivia sujo, com as barras da camisa sempre em barro, suor e lágrimas.

Nos dias de jogo era possível observar um grupo de torcedores reunidos. Comerciantes, operários, filhos de doutores e pescadores. Reunidos e a favor de um único propósito, um amor que se revelaria em gloriosas conquistas.

Ora se deu que um dos torcedores, um pescador, num fim de jogo, me oferecera três lindas estrelas-do-mar. Confesso ter ficado surpreso com tal oferenda, e ele, percebendo meus olhos de dúvida, logo me dizia se tratar de um presente de boa sorte e que eu deveria secá-las bem ao sol. E depois de me olhar indiferentemente carinhoso seguiu em partida com o grupo jovem de torcedores.

Isso nem agradeci. Antes que algum companheiro pudesse notar fui esconder, perto do muro lá na linha de fundo, meus três patuás. Dali em diante ganhamos quase todos os jogos, a glória era evidente e o segredo de tanto sucesso não podia, assim, se revelar.

Antes das partidas, logo após o almoço, até o fundo do campo eu ia correndo ver as estrelas-do-mar. Eram três, uma menorzinha e duas grandonas. Uma das maiores tinha as pernas tortas tal qual o mais genial dos jogadores de General Severiano, mas assim mesmo era muito mais bonita que a pequenina, que trazia o defeito de não possuir uma das pontas. Essa decerto não dava boa sorte não, as outras é que davam. Mas o caso era manter sempre junto as três, nunca que eu deveria largar de uma delas, pelo bem do time e por sucesso pessoal.

Foi então que aconteceu o caso desgraçado de que jamais me esquecerei em seu menor detalhe. Estávamos em longa e propagandista preparação para o Mundial a ser disputada na Inglaterra, em 1966. Foram 47 jogadores, cidades distintas e toda uma bajulação ao time bicampeão.

Num fim de treinamento puxado, nos arredores de Caxambu, pude notar um portuga magro, de enormes bigodões, sentado num monte de terra, afastado de outros torcedores, com ar de melancolia. Eu havia de treinar, mas a solidão do homem me preocupava, quase me doía, e eu rabeava olhares em direção ao patrício. Quando perguntei sobre o que ele tinha, apenas pude ouvir resmungos de “má sorte”, mais a si mesmo que a mim.

Fiquei devastado. Minha Nossa Senhora! Aquele homem sofria de má sorte! E, no entanto, eu era feliz. Jogador do Santos e da Seleção. Eu e minhas três estrelinhas-do-mar. O certo é que eu pusera imediatamente as estrelas no diminutivo, porque se houvesse de ceder, de antemão, alguma delas ao homem, deveria desvalorizar as três. Fiquei desesperado. Agora eu tinha que dar pra ele, que de tantos males sofria, uma delas. Havia de ser a maior, em dever moral de oferenda e gentileza.

As lágrimas corriam francas percorrendo a camisa canarinho. Fui correndo, fui morrendo, fui chorando, em comunhão de sentimentos antagônicos e perpétuos. Entreguei em mãos a maior delas dizendo se tratar de um amuleto de boa sorte.

Ele bem que entendeu, me olhou, foi pegando a estrela e sorriu por trás de seus naturais e nacionais bigodões, um riso tímido, desacostumado e natural. A mão calosa quis se ajeitar em concha pra me agradecer, acarinhar. Mal sabia ele a extensão de meu sacrifício. Pude sentir seus dedos a roçar meus cabelos cortados.

Eu corri. Corri sem olhar o semblante daquele senhor. Pude ouvir de longe a promessa de levar o nome, José Eli ou Zito, como homenagem em seu primogênito. Naquele instante era impossível saber o que havia em mim, um gosto maltratado, cheio de presságios e desilusões claríssimas. Naquele ano perdemos a invencibilidade, a credibilidade e nossos melhores jogadores.

Sozinho, ao voltar para casa, eu sofria arrependido. Vendo inutilizar-se no infinito dos sofrimentos humanos a minha estrela-do-mar.

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