Desaprendendo com os nossos erros

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Tenho um passatempo um tanto masoquista de pensar se seríamos capazes de repetir erros históricos. Por mais que eu queira acreditar que nós aprendemos com grandes tragédias e erros, cada vez me convenço mais de que nossa soberba, arrogância e incapacidade de reconhecer limitações faz com que nós nos tornemos perfeitamente capazes de errar novamente. E da mesma maneira.

Semana passada, revisitei a história da maior tragédia do futebol mundial, ocorrida no estádio Hillsborough do Sheffield Wednesday na qual 96 torcedores morreram esmagados dentro de campo. Pelo exercício, resolvi pensar se esse episódio poderia acontecer hoje. Relembro os principais equívocos do caso:

Troca de comando policial/Despreparo da policia

1989
Existe uma informação que poucos conhecem na história de Hillsborough. O superintendente geral da polícia responsável pela atuação nas cercanias do estádio era um senhor respeitado, com ampla experiência em jogos de futebol e “criado na rua”. Semanas antes do fatídico jogo, alguns policiais do departamento resolveram pregar uma peça meio sem noção em um novato, que reclamou formalmente. A história vazou e os executores da pegadinha foram afastados junto com o chefe Brian Mole pego meio de bode expiatório. Poucas semanas antes do jogo entre Liverpool e Nottingham Forest, David Duckenfield assumiu, um cidadão com pouca experiência em campo e nenhuma vivência com futebol (ele chegou a dizer o nome do Nottingham de maneira incorreta dias antes do jogo). A maior parte das falhas operacionais policiais ocorridas nos momentos antes, durante e após a paralização do jogo aconteceram por um “congelamento e pane” do novo chefe. Essas falhas incluíram: mal gerenciamento do fluxo das catracas, ordenamento incorreto de abertura do portão C, ausência de ordens claras aos comandados, ausência de um plano emergencial, entre outras.

2015
Seria leviano de minha parte afirmar que eu conheço o alto escalão policial que comanda as operações em estádios, mas eu vivo de perto o procedimento da PM em estádios. Amigo, o pau come e a chinela canta. Primeiro bate, depois pergunta. Nos meus anos de vivência em estádio já fui esmagado, colocado contra a parede, refrescado com spray de pimenta e bastante xingado. Para ser justo, em um notório Corinthians x River pela Libertadores de 2006, pude acompanhar in loco uma das atuações mais dignas, corretas, corajosas da PM em um estádio de futebol, mas tal operação foi muito mais uma exceção do que a regra do procedimento policial. É difícil afirmar se falta preparo ou se o “briefing” é feito para deixar os homens pilhados, mas fato é que nesse aspecto não dá para dizer que evoluímos muito desde 1989.

Superlotação dos estádios

1989
Esse foi o motivo crucial que levou ao esmagamento de torcedores. No setor atrás de um gol, havia um número muito maior de torcedores em pé do que efetivamente cabia nesse espaço. Alguns deles, aproveitaram-se da abertura do portão C e entraram sem ingresso. Outro fator complicador foi a presença de “corrimãos” no setor que impediram que os torcedores pudessem se movimentar em busca de maior espaço livre.

2015
Como se sabe, hoje em dia a capacidade de quase todos os estádios foi reduzida drasticamente e são poucos os espaços nos quais pode se torcer de pé. Indiscutivelmente uma aglomeração excessiva é mais difícil de acontecer até mesmo pelos sistemas de sócio-torcedor que muitas vezes inibem o cidadão sem ingresso até mesmo de ficar zanzando próximo ao estádio em busca de um ticket de última hora. Ironicamente, no entanto, as autoridades insistem em colocar o maldito “corrimão” para proteção das pessoas sob uma lógica bastante intrigante: No caso de aglomeração de pessoas será que os corrimãos ajudam a afastar as pessoas das outras ou simplesmente ocupam um espaço que poderia ser utilizado para movimentação? Depois de mais de 20 anos, ainda não aprendemos.

Na foto acima, podemos ver os  “corrimãos” no setor reservado à organizada na Arena Corinthians. Corrimãos similares foram construídos nas maiores arenas do Brasil, principalmente nos setores que geralmente são mais ocupados. (Foto: Futebol De Campo)

Culpabilização do torcedor / institucionalização de crime

1989
Esse é o tema mais sensível tratado no documentário produzido pela ESPN. Diversos erros foram cometidos pelo departamento policial de Sheffield no dia da tragédia. 

Inicialmente houve um erro de cálculo de fluxo dos torcedores. Apesar da torcida do Liverpool estar presente em maior quantidade, lhes foi reservado um pequeno número de catracas e isso acabou gerando um gargalo enorme em uma das entradas. Apavorado, o chefe de polícia ordenou a abertura do portão C minutos antes da partida fazendo com que um enorme grupo de torcedores se aglomerassem em um mesmo setor. A cena é devastadora. Com apenas seis minutos de jogo, podemos ver a superlotação de forma nítida. Alguns torcedores são puxados para arquibancadas superiores, outros tentam pular a cerca para ir para o campo de jogo e outros simplesmente são esmagados contra a grade, quebram ossos ou falecem embaixo de uma pilha de pessoas.

Com muita coisa em jogo, a polícia põe um plano calculista em prática. Com o jogo paralisado e os socorros sendo prestados dentro de campo, começam a se espalhar os boatos de que na realidade alguns hooligans sem ingresso teriam derrubado o portão e invadido o setor, tendo eles sido os responsáveis pela superlotação. No dia seguinte, os órgãos de imprensa passam a questionar a índole dos torcedores do Liverpool presentes no estádio. O The Sun chega a afirmar que alguns torcedores roubaram a carteira de pessoas falecidas em campo, urinaram em policiais e bateram em policiais que estavam fazendo respiração boca-a-boca. Por conta dessa manchete , até hoje, muitos torcedores do Liverpool boicotam o The Sun que teve que se retratar publicamente quase 25 anos depois do ocorrido.

Na sequência, todos os inquéritos e investigações policiais passam a se focar no consumo exagerado de bebidas alcoólicas por parte dos mortos em Hillsborough buscando apontar os torcedores falecidos como culpados pelo seu próprio destino. Amostras de sangue dos mortos são coletadas (inclusive das crianças!) e o nível alcoólico dos 95 falecidos (o 96 viria a falecer somente dois anos depois) é publicado em jornais da Inglaterra.

Após as primeiras etapas do plano, algumas autoridades alteram o depoimento oficial de diversos policiais (podemos tirar se quiser) que apontavam as falhas muito mais do lado policial dos torcedores.

O documentário me ensinou algo que eu não sabia. A dor dos familiares pela morte de entes queridos no jogo foi imensa, mas ela parece ter sido maior quando as autoridades e a justiça classificaram as mortes como “acidente”. Formalmente, o hooliganismo pagou uma conta que não lhe cabia e a lastimável atuação policial no fatídico dia foi convenientemente ignorada por anos a fio. Por incrível que pareça, o caso foi revisto duas vezes com a mesma sentença até que em 2012 foi formada uma comissão independente que a luz de todas as novas descobertas (principalmente dos depoimentos policiais que foram alterados) mudou o foco e passou a incriminar os verdadeiros responsáveis.

2015
Não é preciso ser muito esperto para sacar que o que aconteceu em Hillsborough/Liverpool de 1989 até 2012 é um processo que vemos frequentemente no futebol brasileiro. Vivemos um grande circo hipócrita no qual todos os agentes envolvidos tentam simultaneamente se livrar de suas parcelas de responsabilidade e colocar os torcedores como culpados por qualquer problema.

Nesse ano, tivemos um espetáculo à parte antes do primeiro Corinthians e Palmeiras da história da Allianz Arena. Iniciou-se com o presidente Paulo Nobre afirmando que desejava ter torcida única palestrina. Com esse tipo de atitude Paulo alastrou o clima de guerra, de conflito e de não convivência. Na sequência, o Ministério Público sabe se lá sob qual base legal, deu coro à voz de Paulo Nobre e ameaçou processar os dois times e a FPF caso o jogo contasse com as duas torcidas. De uma tacada só, tanto Paulo Nobre como o MP já haviam se eximido de qualquer responsabilidade caso uma cagada acontecesse, mas faltava o principal ingrediente ainda. No dia do jogo, já com a decisão alterada para o dérbi contar com as duas torcidas, a PM executou seu modus operandi padrão, intervindo com violência na torcida do Palmeiras nos arredores do estádio. O clima de guerra havia sido criado muito mais pelo Paulo, pelo MP e pela própria PM do que pelos torcedores, mas o que importa é a história que foi contada e não a que de fato aconteceu. E no dia seguinte ao jogo, a Globo.com noticiou ao menos 5(!) matérias sobre “suposto” conflito da torcida palestrina com a PM e a briga entre torcedores corintianos dentro do estádio. O espaço reservado aos conflitos das torcidas foi exatamente o mesmo do que todas as outras matérias sobre o jogo.

Utilizei o exemplo do dérbi como metonímia para algo que ocorre sempre no futebol brasileiro: Presidentes, órgãos públicos, a força policial e a imprensa criam um clima desnecessário de guerra e no final das contas o torcedor é responsabilizado por um conflito que ele não gerou e não quis participar, exatamente como aconteceu de maneira mais organizada e estruturada em 89.

Mas e daí?

O objetivo desse texto não é responder à pergunta se uma tragédia do porte de Hillsborough poderia ocorrer novamente no futebol brasileiro de hoje de maneira binária, mas sim compreender os problemas gerados por acreditar que um problema está sendo solucionado quando empregamos as maneiras erradas de combatê-lo.

Os estádios de hoje acolhem menos torcedores, são mais seguros, não vendem bebidas alcóolicas e proíbem que o torcedor leve praticamente qualquer artefato que pode vir a ser uma arma, incluindo guarda-chuvas e jornais. A imprensa nos vende que o torcedor é o maior perigo e pelo fato dele estar sendo sempre repreendido de maneira pública, nós acreditamos estar mais seguros.

No entanto, quando apontamos nossos dedos para o torcedor de maneira leviana, desistimos de questionar a atitude de diversos outros agentes que promovem e contribuem para a violência e em maior escala, para a possibilidade de nos depararmos com novas tragédias.

Depois de 25 anos, esse foi o maior legado que Hillsborough nos passou e nós não aprendemos. Nós seguimos comprando o The Sun.

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