Não é só subir, é criar memória

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Crédito: Rogério Moroti/Agência Botafogo
Crédito: Rogério Moroti/Agência Botafogo

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Assim começa Infância, de Graciliano Ramos, o relato autobiográfico cujo título já explicativo remete aos primeiros anos de vida do pequeno Graça em Alagoas e Pernambuco.

O meu primeiro jogo de futebol em Ribeirão Preto, região da família por parte de pai, foi um Come-Fogo que jamais saberei se estive, mas a história conta que choveu demais, um dilúvio digno de quase interromper o clássico e precisar de cuidado para proteger as crianças, e vá saber o que é história.

Mas começou a chover no estádio Anacleto Campanella, um vento úmido, um chuvisco que um dia talvez vire trovoada, para que São Caetano, em casa e de uniforme que remete ao azul no desenho do auge, e Botafogo, empurrado pela torcida que pegou a estrada ouvindo Sérgio Reis, decidissem uma vaga na Série C, a terceira divisão do ano que vem.

Até então, na atual competição, a Série D, o São Caetano vinha passeando na Avenida Goiás: foi líder do grupo 8 na primeira fase com o melhor ataque – disparado – do campeonato e se classificou com grande tranquilidade e antecedência, dez pontos à frente do terceiro colocado e com apenas uma derrota em dez jogos.

Já o Botafogo sofreu mais na chave 6: mesmo que só tenha perdido uma vez, empatou demais e chegou na rodada final em igualdade de pontos com o Gama para um confronto direto em Ribeirão Preto, quando um zero a zero garantiu a equipe tricolor no mata-mata e adiou o feliz ano novo.

Nas oitavas, ambos mataram seus confrontos logo no jogo de ida – o São Caetano eliminou o Coruripe, enquanto o Botafogo bateu o Crac. E na primeira mão das quartas, fase que garante ao vencedor não só a ida à semifinal como o acesso, o time do interior fez 2 a 1 no da Grande São Paulo, saindo do estádio Santa Cruz com vantagem na bagagem aberta na última sexta-feira, no ABC.

Crédito: Rogério Moroti/Agência Botafogo
Crédito: Rogério Moroti/Agência Botafogo

Não aconteceu nada no primeiro tempo do jogo decisivo, ao menos em campo. Fora dele, as torcidas seguiam tomando as arquibancadas, e se a Fiel Força Tricolor já cantava atrás do gol de Neneca, a rádio cimento informou que a turma da Kamikase estava parada no comboio da polícia, atrasada – entraram com a bola rolando. Do lado mandante, talvez a revista policial não se preparou para tanta gente, ou vai ver é sempre lento assim mesmo, e do nada, ali pelos 25 minutos, o povoamento do Anacleto foi crescendo – foram anunciados 12,4 mil presentes, mas há quem diga que tinha metade disso, muito pela promoção de um ingresso por uma garrafa pet que poderia ter encalhado entradas.

O empate sem gols favorecia o Botafogo, recuado desde a rodovia dos Bandeirantes. Já a ansiedade no São Caetano não cabia nos 15km2 da cidade, aumentada quando aos 23 minutos o meia botafoguense Vitinho, o mítico dez franzino, canhoto e mais lúcido nos lampejos de contra-ataque dos visitantes, teve de matar a jogada no meio campo e acabou justamente expulso com o segundo amarelo. Aí virou drama.

O Azulão chutou bola trave, teve gol impedido em cima da linha e protagonizou aquela cena clássica de final de jogo eliminatório, com trocentos jogadores na área e o chute indo longe, sobrevoando o recuo atrás do gol, para desespero da torcida na arquibancada atrás da meta. Ainda surgiram sinalizadores na bancada mandante, o árbitro interrompeu a partida até que se apagassem (isso é novo, mas já rotineiro) e uma briga entre torcedores do time da casa – Gladiadores e Comando Azul – abriu um clarão num canto, perto do escanteio. E quando o lado tricolor já respirava por aparelhos, Neneca saltou feito um gato e tirou a bola da cabeça do rival para garantir o oxo e a festa.

Não me lembro a última vez que vi tanta gente chorando numa arquibancada. Incontroláveis torcedores delirando na dúvida entre subir no alambrado, rezar aos céus, abraçar aquele semi-conhecido ou beijar o distintivo do clube do coração. Num rastro de uma camisa com o nome do Sócrates e com o eco da música que lembra Zé Mário, a curva do estádio municipal virou uma grande rodada de chope no Pinguim.

Caiu a noite e cantou-se o hino pra acordar só na Série C. Com mais um vaso de louça vidrada na estante do torcedor botafoguense. Para jamais esquecer.

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