O Elo Partido

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Por Victor Faria

Subitamente, não sabia mais como se escalava o time. Era como se enfrentasse uma tarefa desconhecida, com que nunca tinha tido qualquer familiaridade. Recomeçou do princípio. O goleiro, laterais, um zagueiro – e nada. Suspirou com desânimo e olhou atento aquele time que entrava em campo. Vagarosamente, tentou lembrar das opções do time – e de novo parou, sem sequência. Sua imagem refletida, rugas e suor na testa: subitamente o lateral-direito era o da esquerda, o lateral-esquerdo postado à direita.

– Vou descendo – anunciou a mulher, impaciente.

– Escuta – disse ele, forçando o tom de brincadeira – Como é mesmo que se chama nosso camisa nove?

– Engraçadinho – e a mulher saiu sem olhá-lo.

Quanto tempo durou aquela hesitação? Essa coisa familiar, corriqueira, cotidiana – escalar o time. Uns poucos segundos mais, um minuto, dois minutos ou mais? O tempo da ansiedade, não o do relógio. Não fazia calor, e nas costas das suas mãos começou a porejar um suor incômodo. Assim como surgiu, na mesma vertigem, passou: logo suas mãos inconscientes se organizaram, os pensamentos e, independentes, listaram um a um cada nome e posição em campo. O puseram em condições de, satisfeito, sair de casa. Ia a um jantar.

Estimulado pelo uísque, desejoso de atrair a atenção dos circunstantes, ocorreu-lhe, no meio da conversa, contar o pequeno incidente pitoresco:

– Agora mesmo, em casa. Ao me vestir. Esqueci como é que se escala o time.

E antes que despertasse qualquer curiosidade, uma chave se torceu dentro dele. O fato insignificante deixou de ser engraçado. Uma aflição mordeu-o no íntimo. Como uma luz que se apaga. Uma advertência. Um sinal que anuncia, que espreita e ameaça.

– Essa é boa – curioso ou simplesmente gentil, um dos ouvintes procurou estimulá-lo.

Mas o esquecimento já não era apenas um incidente pitoresco. Disfarçou o próprio desconforto e, grave, interditado, sentiu a língua travada, como se esquecer o time titular fosse logicamente sucedido da incapacidade de contar.

Apenas um lapso, que pode acontecer a qualquer um. Tolice sem importância. E nem se lembrou mais, até que dias depois, achando graça, a mulher tirou-o da dificuldade: escalou por ele o time desfeito. Uma terceira vez ocorreu dias depois. “Estou ficando gagá”, pensou, entre divertido e irritado. Retirou-se e procurou com calma recuperar a inocência perdida. Pois era como ter perdido a inocência, de súbito autoconsciente.

Mas logo esqueceu e saiu para a rua, como todo dia. Estava no elevador do edifício, quando deu acordo de si. Bem disposto, recém-banhado, cheirando à nova loção de barba, olhava com magnanimidade o dia que o esperava, o mundo em torno. Pulsava nas suas veias sãs uma suculenta harmonia. Presente tranquilo, futuro próspero. Confiava em si, confiava na vida.

Só o elevador demorava mais do que de costume, pequeno borrão na manhã alegre e amiga. Não fazia sentido aquela demora que, de repente, perturbou-o como um cisco no olho. Verificou que o elevador continuava para no sétimo andar. Queria não pensar em nada, apenas esperar como todo mundo.

Fechou os olhos, meio tonto, reabriu-os. Ninguém conhecido. Olhou a nuca do homem à sua frente: toutiço sólido, de cinquentão próspero. Jurava que agora o elevador vinha descendo. Quis certificar-se e deu com a luzinha sempre acesa no sétimo andar. Ele continuava parado no sétimo andar. Retirou o lenço do bolso e enxugou a fronte e o pescoço. Vinha-lhe de longe um desconforto a princípio moral – como se tivesse cometido uma falta grave que ali mesmo seria descoberta. Há quanto tempo esperava no elevador? No sétimo andar o contínuo continuava a imobilizar.

Dentro dele, um desejo minucioso de examinar-se. Como costumava fazer quando ia viajar. Arrumar a mala sem esquecer nada, um lenço sequer. Peça por peça, ia passando tudo em revista. Mas naquele momento era como se tivesse esquecido qualquer coisa que não identificava. Que o condenava aos olhos dos que ali ainda aguardavam.

Quando a revisão a que se submetia chegou aos pés, ocorreu-lhe que tinha se esquecido de calçar as meias. Tentou sorrir da dúvida disparatada. E queria lembrar-se, ter certeza de suas meias, do momento em que as calçara. Recompunha cada detalhe de tudo que tinha feito desde o momento em que acordara. A barba, o banho de chuveiro, todos os atos, que, automáticos, inauguravam um novo dia, um novo homem. Usava habitualmente só meias vermelhas, brancas e pretas.

De que cor eram, naquele momento, as suas meias? Um desejo ardente de esticar uma perna, depois a outra, arregaçar as calças e olhar, comprovar. Mas o medo irracional do ridículo, como se todos no elevador acompanhassem a sua preocupação e esperassem apenas um gesto de sua parte para vaiá-lo. Sorriu sem sorrir. O sangue estremeceu pela altura do peito até o pescoço.

A obsessão agarrou-o: de que cor eram as meias, de que cor? As suas meias, as que usava naquele exato momento. De que cor eram? Procurou se lembrar das circunstâncias com que em casa se vestiu, sua rotina, uma cadeia de gestos repetidos inconscientemente. Mas agora precisava lembrar-se: as meias? Tinha vontade de suspender a calça e olhar, mas se continha. Nada o denunciava, um cidadão como outro qualquer, um cavalheiro, impecável, à espera no elevador, que todavia não se deslocava. E ninguém se impacientava. Como se só a ele coubesse quebrar o silêncio. Todos o observavam.

Até que foi invadido pela certeza cruel de que usava meias de outra cor, um verde escancarado em sua indumentária tricolor. A gravata era vermelha, podia ver. A camisa era branca. O terno era preto. Mas as meias. As meias berrantemente verdes tornavam os seus pés alheio, episcopais. Estava de pé sobre pés estranhos.

Enxugou o suor no rosto. Lá fora, os carros e as pessoas passando. A manhã perfeita, luminosa. Mas as meias eram inabsorvíveis. Onde é que fora arranjar aquele par de meias, santo Deus? Ocultas ainda sob as calças, ameaçavam vir a público, denunciá-lo. Agora tinha definitivamente certeza: um escândalo, ridículo, um verde-vivo.

Súbito, como se tivesse estado distraído, ou dormindo, o elevador escancarou a porta no andar térreo. Sentiu-se paralisado, preso ao chão, incapaz de locomover-se com as pessoas à sua frente, os que se postavam às suas costas. Foi preciso quase que o empurrassem, as grotescas meias verdes, para que ele, morto de vergonha, sem poder olhar os próprios pés, se animasse a sair do elevador.

Finalmente tomou coragem para verificar. Suspendeu as calças, fixou com espanto as próprias pernas: agora de novo suas meias eram pretas. E os sapatos voltavam a ser os seus sapatos. Movia-se outra vez com os próprios pés. E o dia prosseguiu em sua confortável rotina. Nem de longe podia pensar em contar pra alguém. Não havia o que contar.

O tempo passou. Nada fora do comum aconteceu nas semanas seguintes. A não ser um pequeno desmaio da memória: esquecera o nome de um amigo do clube. Teimoso, ideia fixa, passou horas tentando lembrar. Não podia dormir sem que lhe viesse o nome que escapava. Uma falha na cadeia lógica e vulgar das lembranças que cercavam aquele antigo colega de trabalho. Puxando pela memória, reavivou pormenores há muito sepultados pelo tempo. Mas o nome. O nome não lhe ocorria. Na ponta da língua, mas inarticulado, desfeito. Tinha de esquecer que esquecera, para então recuperar, espontâneo, o que com esforço não conseguia arrancar de dentro de si mesmo. Tudo perfeito, alerta, mas um pequeno colapso insistente, inexplicável. Via a cara do companheiro, ouvia-lhe a voz, podia descrevê-lo. Mas o nome. O nome por atar. Dormiu frustrado, mais aborrecido do que seria natural diante de lapso tão inexpressivo.

– Marcelo! – no meio da noite acordou assustado e tinha na boca, de graça, atado, o nome que em vão perseguira antes de dormir.

Amnésias assim, sabia, acontecem a todo mundo. Não chegam a ser tema de conversa. Deu de ombros, não comentou nem com a mulher. Dois ou três dias depois, porém. Numa noite em que se recolheu mais cedo, morto de sono. Fisicamente exausto, atirou-se pesadamente à cama e não conseguia deitar-se cômodo, como toda noite.

– Como é mesmo que eu durmo? – queria saber qual a posição que habitualmente tomava para dormir. A postura que usava no sono, insabida. Probleminha idiota, mas que o desorganizara mentalmente e o lançava numa aflita perplexidade física. Deste lado: não era. Virou-se do outro lado: também não. Como distribuir o corpo na cama? Cruzou os braços no peito e sentiu-se estranho, ridículo. Cruzou as mãos e pareceu sinistro, fúnebre. Era como se antecipasse o defunto que não queria ser. Angustiante ideia da morte.

Até que associou o mal-estar com a primeira vez que não soubera escalar o time. Alguma coisa de comum, um escondido traço unia um episódio ao outro. Nada alarmante, só um pouco grotesco. Vexame. Ajeitou o travesseiro, a cabeça alta demais. Afastou o travesseiro, recolheu as pernas, dobrou os joelhos, mas ainda assim não conseguiu retomar a naturalidade. Buscava um ponto de equilíbrio e não o achava. Não era assim, nunca foi assim. E o tempo passava, o sono não vinha. Sentado na cama, passou a mão nos cabelos já brancos e procurou controlar-se. Decidiu recomeçar do princípio e ainda sorriu do próprio embaraço. Tinha a sua graça. Um cidadão morto de sono esquecer como é que costuma dormir.

Para a esquerda. Para a direita. Num princípio de tonteira, a cabeça cresceu de volume e desprendeu-se do corpo, que agora lhe parecia estranho, como se não fosse dele. Enfiou as mãos entre os joelhos, enroscado em si mesmo, fetal. Suportou aquela disciplina por alguns minutos, resistindo ao desejo de se levantar, fugir da cama, do sono, de si mesmo. Vontade de esquecer-se, abandonar o próprio corpo, com que já não se sentia solidário.

– Como é mesmo que eu durmo? Como é raios que eu sempre dormi em minha vida? – e não se sentia confortável.

Como todas as noites, serena, sem arquitetura, a mulher dormia ao seu lado. Impensável acordá-la para perguntar como é que ele dormia. Ficaria uma fera com a brincadeira sem graça. Ou ia pensar que estava louco. Devagarinho, sem alterar a respiração, meteu-se debaixo dos lençóis, de costas, de olhos fechados.

E começou a flutuar no espaço. O jogo recomeçava. Ora só o corpo, girando circularmente, subindo, descendo. Ora o corpo e com o corpo a cama, rolando depressa, mais depressa. Abria os olhos, parava. Mudou de posição, mas agora o sono não vinha. A ponta do sono, inagarrável. O sono desfeito como um novelo amontoado, sem começo nem fim. Sem nó.

Não reencontrava a perdida intimidade consigo mesmo. Não sabia mais deitar-se e dormir. Ficou quieto, tentando esquecer, sem pensar. Deflagrada, a insônia recusava-se a apagar dentro dele. Desejo de absorver-se, reorganizar-se, pedaço por pedaço. Membro por membro. Reintegrar-se. Esquecer-se para dormir. Recostado contra o travesseiro, meio sentado, a noite tinha ancorado para sempre num porto de fadiga e torpor. Noite longa, lenta, oleosa, de silêncio e vácuo.

O dia clareando, libertou-se da insônia e se meteu na cama até a hora de costume.

Dia estafante, devolvido à rotina como se nada tivesse acontecido. Só à noite contou o caso para a mulher que ouviu calada, irrelevante. Mas não contou o que agora lhe parecia absurdo: esquecer-se, como quem perde uma chave, de como deitar-se para dormir. Era um segredo e uma ameaça. E à distância de algumas horas, remoto como uma experiência alheia.

Naquela mesma noite levou para o quarto e para a cama o temor de que tudo ia se repetir. Demorou-se no banheiro. Ao espelho, observou as rugas nos cantos dos olhos, o cabelo branco. Queria afastar a lembrança da véspera. Distrair-se.

E dormiu naturalmente, como todo dia. O cotidiano refeito, as noites tranquilas, repousantes. Até a próxima semana.

Foi a primeira insônia completa de sua vida. Noite branca, hora a hora, minuto após minuto, segundo por segundo. Virava e revirava-se na cama, esbarrava no mesmo desconforto. A vida deixava de fluir. Uma parada, uma ausência. Um elo perdido. Levantava-se, procurava esquecer, desligar-se daquele segredo comprometedor. Ligar as duas pontas do que sempre fora ao que deveria continuar sendo, sem interrupção. Pensou, lembrou, repensou, relembrou. Cruel, a noite vagarosa, a interminável noite ancorada. E a sua pequena desprotegida solidão, palpável, aborrecido plantão pra nada. Estar só e acordado o fazia mais só, mais acordado. Velava a si mesmo. Dormir seria como perder a própria companhia.

O dia claro, alto sol, a casa restituída à sua visão familiar, a cozinha e a copa recendendo ao café fresco, fez a barba, tomou banho e saiu. Queria trabalhar – a incomunicável insônia, de que à luz do sol se envergonhava. Era inverossímil. E era preciso guardar o segredo. Como se escondesse um malfeito infantil, sua culpa.

– Que é que há com você? – a mulher deu um sinal de perceber.

– Nada.

– Então dorme.

O horror de ir para a cama. E a impossibilidade de contar, partilhar sua vergonha. Ficou mais sozinho. Já não era igual a todo mundo. Tinha medo e orgulho – um homem diferente. Sua singularidade ameaçava, mas consolava também. Sentia-se mais próximo de si mesmo.

– Por que você não consulta um médico? – a mulher desconfiava.

Pequenos desvios imperceptíveis. Falhas de memória, hiatos convulsivos. Pensou em consultar um especialista, mas confiava em sua saúde de ferro. Deixou-se de preocupar-se com a escalação do time. Esqueceu a insônia. Ridículo contar a sério que, na hora de dormir, já não sabia como se deitar. Não tinha importância.

Uma tarde, ao falar pelo telefone. Era com o capitão do time, com quem se dava muito bem, juntos prosperaram. A princípio apenas um mal-estar indefinido. Depois não conseguia se lembrar da cara do goleiro. A voz conhecida, a conversa nítida, o riso de sempre, os cacoetes – mas como era mesmo a fisionomia? Desligou o telefone e teve a impressão de que estava pálido. Apertou a cabeça entre as mãos. Fechou e abriu os olhos, pontinhos volantes. Como é a cara dele? A cara sonegada, escamoteada como num passe de mágica. Tudo o mais era como de costume, mas a penetrante sensação de aviso o ameaçava.

Todo mundo tinha uma fisionomia pessoal e intransferível. Mas o goleiro e capitão – como era? Estúpido vazio. Sabia-se despojado de qualquer coisa essencial e, pela primeira vez, frágil, desprotegido contra o que podia acontecer, teve medo, tremeu de medo. Era um compromisso que não queria aceitar, mas de que não conseguia desvencilhar-se. Uma arapuca do tempo, do destino. Precisava apelar para alguém, pedir socorro. Recuar do abismo, mudar de rumo, rejeitar o que podia vir, o que sobrevinha, iminente, incontornável – e não tinha nome, nem configuração.

Desligado de tudo, já sem interesse pelo que acontecia dentro das quatro linhas, recolheu-se à casa. Sua casa poderia protegê-lo. Leu sem pressa o jornal e ligou a televisão. Era um homem normal, um homem como qualquer outro, mas, por trás dos seus gestos, de sua normalidade, um vazio o convocara.

Queria e já não podia contar. E não poder contar o isolava definitivamente, como se, a partir dali, tivesse mudado de lado, passado para outra margem. Dava adeus ao que vinha sendo, a tudo que era – ao dia a dia, aos negócios, ao confortável cotidiano. Mas lutava. Para qualquer nova emergência, não seria apanhado desprevenido.

Uma leve tonteira, como se levitasse, arrebatou-o. perplexo, não aceitava o próprio silêncio. Seu time, não se lembrava do próprio time. Seu nome, seu escudo – tudo permanecia a uma distância inatingível. Lá longe existia, não mais ao seu alcance. Entre ele e o que naturalmente sabia, seu patrimônio, um elo partiu-se, treva opaca, ausência. Automaticamente lembrou do time titular na conquista do Mundial, como num teste decisivo escalou um a um. Perfeito.

Trancou-se no quarto, satisfeito. Espichou-se de costas na cama e leu de cabo a rabo o jornal da tarde. Uma incômoda sonolência fechou-lhe os olhos. A noite caiu sem que percebesse. Acendeu a luz da cabeceira e retomou o jornal como se o lesse pela primeira vez. Voltou à primeira página. Lia e relia o mesmo texto, palavra por palavra. Chegava ao fim e era como se não tivesse lido. Lia sem ler, desligado. Queira estranhar, alarmar-se, mas era como se tivesse sido sempre assim. E a certeza de que assim seria sempre, sem volta possível. Deixou cair o jornal no chão e, esticado na cama, sem qualquer protesto, acompanhava com os olhos a chegada de uma mulher.

– Que é que você tem? – sua mulher veio chamá-lo.

– Nada – respondeu, e estava perfeitamente em paz, resignado.

Brancas paredes despojadas, largo silêncio sem ecos. Desprendera-se de tudo. A longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para além do imaginado.

– Classificamos à Libertadores? – ele perguntou num último esforço.

E, para sempre carismático, conquistado, nem ao menos quis saber em qual colocação.

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