A missão de ser homem e escapar do molde

Ao receber a notícia cada vez mais extravagantes nos chás de revelação, preste atenção na cara do pai. Se a cor for rosa, ele se frustra. Se for azul, ele salta e grita. “É homem!”, comemora. “É macho!”, para ser mais preciso. Convidados aplaudem, parentes se emocionam e confraternizam. “Se fosse menina, teria reação igual”, disfarça. Preste atenção na cara do pai quando lhes revelam que é menina e me digam se não é a estampa do desânimo. “Mas é só brincadeira”, garante. Mas é de brincadeira em brincadeira, cada vez mais cruéis, que serão moldados meninos e meninas, homens e mulheres.

Vamos focar nos meninos, que se engana quem acha que têm uma socialização fácil e sem pressão:

“E as namoradinhas?”
“Honre o que você tem entre as pernas?”
“Já tá vendo revista de mulher nua?”
“A rola já ficou dura?”
“Prendam suas cabritas que meu bodinho tá solto.”
“Larga esse gibi e pega uma Playboy?”
“Aquela menininha bonitinha daquela casa, vai deixar escapar?”
“Tem que começar a incentivar esse menino a olhar mulher senão vira viado”
“Bora fazer a lista das mais gostosas da sala!”
“Imagina fulana só de tanguinha.”
“Homem é assim mesmo.”
“Peguei ela e agora tô mirando na amiga.”
“Engula o choro. Homem não chora“

“Homem não é santo. E a mulher sabe disso.”
“Existe moça para casar e a para se divertir.”
“Aquela ali é muito rodada. Só quem é doido vai namorá-la”
“Casar para comer no mesmo prato todo dia, quem aguenta?”
“Não vai pegar não? Tá virando bicha?”
“É só insistir, dá umas doses, que ela dá fácil.”
“Tá com aquela saia é porque tá querendo.”

“Você não é homem não?”

Qual homem não recorda de tais cobranças, mesmo que mascaradas de brincadeira? Qual não as obedeceu o máximo possível para afastar a desconfiança? Se hoje, você amigo, se considera mais relaxado e até avesso a tais exigências, volte algumas casinhas no tempo e puxe tuas lembranças de adolescente e até de garoto mesmo.

Do seu tio que insistia em afirmar que você (criança) teria um pau tão grande quanto o dele, te encabulando em plena sala de estar. De sua tia que garantia (e te coagia) que você seria o terror das meninas da escola em pleno almoço de família quando você ainda curtia Superamigos. De seus colegas de classe que zoavam e até batiam no menino mais afeminado para expulsá-lo para sempre do convívio e torná-lo um exemplo de vergonha, que faziam brincadeiras agressivas como medir o tamanho do membro no banheiro e dar pedaladas na nuca do perdedor para taxá-lo para sempre de menos homem.

De você protegendo irmãs e primas de caras escrotos. Erguendo barreiras entre elas e eles porque você os conhecia e sabia que aquela doçura inicial era lábia cínica. Com as meninas, o papo era “eu te amo”. Com os rapazes, era: “Ganhei aquela buceta”.

De como você fazia parte do jogo, porque esse jogo era para homens e estar fora dele era não ser homem. Lembre como você protegia irmãs e primas por serem suas irmãs e suas primas e não por ser solidário a mulheres. De o quanto você foi ridicularizado por um amigo ao demonstrar tristeza e chora pelo fim de um namoro. O quanto aquilo te impede até hoje de demonstrar sentimentos e esconder olhos marejados. Das brigas que arrumou por namorada, por futebol, em bar, para não deixar cair a pose de garanhão e macho alfa. Daquela foto que seu amigo postou do filho com a legenda “Derrubador de novinhas”. E você foi lá e curtiu.

De como você, mesmo sendo homo ou bi, absorveu o veneno. De como patrulha atitudes de outros homens. Qualquer deslize em direção ao que se padronizou como viadagem e pronto: ele é enrustido. Se ele beija o amigo na face, ele é gay. Se ele gosta de caipirosca de morango, ele é gay. Se ele usa camisa apertada, ele é gay. Se prefere chá a café, ele é gay. Se ele arruma o cabelo com mousse, ele é gay. Se ele defende os direitos LGBT, ele é gay.

O cara gay ou bi não vem de Urano.  Passaram pela socialização danosa como qualquer outro homem. Têm infiltrado a heterossexualidade, sobretudo masculina, como algo imaculado. De uma pureza sem igual. Não admitem, sob hipótese alguma, que um cara hétero tenha uma relação homo. Nunca. Como assim? Como aquele ícone de perfeição e formatação retilínea pode ter saído do prumo? Jamais. Homem hétero é inviolável. Ocupa o pedestal dos inalcançáveis.

Esquecem que há gays que transaram com mulheres, que têm filhos, que fizeram não apenas por disfarce, mas por vontade, mesmo que esporádica, e não deixaram de ser gays. Mas os héteros não. Eles de jeito algum. São puro-sangue.

Esquecem que os estupros entre homens na prisão ocorrem entre homens héteros. Que é um estupro para reduzir, que não há tesão corporal, que serve para colocar a vítima na condição de mulher, condição considerada inferior. Que é para mostrar quem é o dominante. Esquecem que a orientação sexual não é uma cerca elétrica. Focam no senso comum. Hétero, se faz, é viado no armário.

Como se houvesse um pacto entre homens para idolatrar a heterossexualidade e enchê-la de normas e entraves. Ou apertada em um molde ou não é. Homem com as contradições e possibilidades do humano não é homem, dizem.

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