À deusa melodia

*Por Luiz Felipe Carvalho 

Minha deusa primeira é a melodia. Estamos no terreno pagão da música pop, o que me permite ter vários deuses e deusas de adoração. Tenho, por exemplo, a letra como minha deusa segunda. E adoro todas as outras entidades, como a harmonia, o ritmo, a voz, um instrumento bem tocado, entre tantas outras magias que fazem da música popular a maior invenção da humanidade em todos os tempos. Não, não é o avião nem o pão que já vem fatiado.

A melodia é aquela parte da canção que é a mais simples e a mais complicada. Não é preciso nenhuma formação musical para fazer uma melodia. Você, que acha que não é capaz de fazer música, está duvidando? Comece a assobiar qualquer coisa aí, sem pensar em nada que conheça. Não sabe assobiar, serve um “nananá”. Pronto, temos uma melodia novinha. E aí é que entra a parte complicada. Fazer com que esse encadeamento de notas musicais seja belo, duradouro e cativante é o maior talento que um compositor pode ter. É, no mais das vezes, o que vai determinar se a música será um sucesso ou um fracasso. Basta ver a qualidade das letras e o ritmo bastante semelhante da maioria dos sucessos da nova onda do sertanejo, para ficarmos em apenas um exemplo. Afora todos os componentes variáveis (sorte, bom empresário, o Neymar ser fã, etc), o que os diferencia é a melodia. Aquele refrão cativante, mesmo que não diga nada que outros não digam, sela a sorte de uma canção.

Volto a mim. Acho que o Chico Science & Nação Zumbi é uma boa banda para exemplificar o que sinto sobre isso. Tenho um puta respeito pelos caras, pelas letras e postura políticas, pela pequena (pequena?) revolução que causaram na música brasileira, pelas performances ao vivo – especialmente do falecido Chico. Eles são muito bons. Mas não é o tipo de música que eu coloco para ouvir sempre. As melodias são mais secas, o foco é muito mais no ritmo e no discurso. O mesmo se dá com o metal mais pesado. Ouço, gosto de algumas bandas, mas não é minha trilha sonora.

Gosto de imaginar as notas musicais de uma melodia como que dançando no vazio. E de fato, tecnicamente, elas estão. Detesto professar falsa erudição, então aviso de cara que não entendo lhufas de música clássica/erudita. Mas para mim a melodia que mais ilustra esse conceito vem de Tchaikovsky, em seu concerto para piano número um. Não conhece? Claro que conhece. É esse aqui, ó:

Voltando à música pop, o casamento perfeito é de uma grande melodia com uma ótima letra. Como todo casamento perfeito, esse não se encontra em toda esquina. É algo raro, mas que quando acontece ilumina tudo ao redor. Eu realmente, ou ingenuamente, acho que ouvir uma dessas pode fazer a diferença entre apertar ou não o botão da bomba atômica – literal ou metaforicamente.

A partir de agora listarei onze canções que são exemplos dessa junção. Para diminuir meu leque de possibilidades, e não enlouquecer ao escolher apenas onze (tanto que era pra ser dez e aumentei pra onze), me ative a canções que conheci nos últimos tempos, num período de um ou dois anos pra cá.

1) Wado – Canto Dos Insetos (Wado/Momo/Cícero) – “Cantos dos insetos” é minha canção preferida do álbum Vazio Tropical, de Wado. A revista Rolling Stone fez uma crítica sobre ele, e nela o crítico Pedro Henrique Araújo cita nove músicas do disco, de um total de onze. Nenhuma delas é “Canto dos insetos”. Talvez exista algo de errado comigo – ou com Pedro. Só sei que versos como “não quero você, nem ninguém/ se não for agora”, me encantam, mas a melodia embalada pelo violão de Marcelo Camelo, que produziu o trabalho, me encanta mais ainda.

2) Vampire Weekend – Obvious Bicycle (Rostam Batmanglij/Ezra Koenig) – Um exemplo de como uma boa melodia se basta com um arranjo simples. A bateria praticamente só marca o tempo. O teclado faz incursões suaves. O baixo é discreto. Esta versão ao vivo ressalta ainda mais esse minimalismo, refletido no simples refrão: “então ouça: não espere”. Quatro palavras, precisas e preciosas. Mas eu adoro também os versos “tenha em mente aquela lista de quem agradecer/e não se esqueça dos ricos que foram bondosos”.

3) Regina Spektor – Firewood (Regina Spektor) – “Firewood” é uma obra-prima. É a junção perfeita entre letra e melodia à qual me referi. Se você entende um pouco de inglês e não sentir nada ao ouvir a música, talvez seja caso de procurar um médico. Aliás, é sobre camas de hospitais que a música trata. “Levante de sua fria cama de hospital/Estou te dizendo, você não está morrendo”. Triste? Sim. Mas estranhamente esperançosa. Afinal, “o piano ainda não virou lenha”. A mensagem é: enquanto viver, viva, brigue, esperneie para se manter vivo.

4) Laura Marling – Once (Laura Marling) – Na versão que selecionei para essa canção, sua autora se acompanha apenas ao violão. É o grande teste de qualquer canção. Uma grande voz ajuda, cílios enormes também, mas o triunfo é da melodia. Esqueçamos que ela está no Royal Albert Hall e imaginemos apenas uma trovadora e seu violão pelas ruas de alguma cidade na Idade Média.

5) Irene Bertachini – Dia bom (Irene Bertachini/Gustavo Amaral) – Conheci essa música no programa Sr. Brasil da TV Cultura, em uma versão singela com voz e violão. Essa versão não está disponível no YouTube. Esta que aqui apresento se assemelha mais à versão barroca do cd da artista, com 400 mil instrumentos diferentes. Não importa. O encanto permanece. Não se deixe abater pela introdução lúdica de mais de um minuto, porque a recompensa virá, na forma de uma letra e de uma melodia que traduzem a infância como poucas outras. A mãe e o pai descritos na letra são os meus – e eu espero que ao menos um dos dois seja também o seu.

6) Death cab for cutie – Hold no guns (Benjamin Gibbard) – “Meu amor, por que você corre?/ Minhas mãos não carregam armas”. Com uma melodia que traduz fielmente os sentimentos de sua letra, essa deve ser uma das cinco músicas que mais ouvi nos últimos dois anos. E não porque eu tenha passado pelo que descreve a letra, que é um fim de relação, em que se pergunta “pra quem você vai ligar na noite mais fria do inverno?”. Mas porque ela é linda mesmo. Não há registro ao vivo da banda tocando a canção, mas encontrei um cover bem decente de um tal Kyle Langdon, direto da Carolina do Norte, que é bem fiel ao original.

7) 5 a seco – O sonho (Pedro Altério/Tó Brandileone) – Assistindo ao vídeo chega a ser impressionante que meninos tão novos tenham feito uma coisa tão profundamente bonita. Ainda mais sendo uma canção que fala sobre a relação de um pai com sua filha que vai “sair de casa e se atirar na noite fria”. Não, eles não tem filhas que se atiram na noite fria. Mas eles intuem precisamente o que pode ser isso. O verso “só conte comigo pra tudo, todo dia” entrou na galeria dos meus preferidos de toda a vida.

8) Jack White – Entitlement (Jack White) – Meu irmão praticamente me obrigou a ouvir o disco Lazaretto, de Jack White. Fez bem. Minha canção favorita do álbum é, para mim, um exemplo perfeito de uma das maiores instituições da música pop: o refrão. Desde a primeira vez que o ouvi, consegui imaginá-lo sendo cantado daqui a duzentos anos, em uma homenagem qualquer à música feita nesse começo de século XXI. E essa força fica evidente mesmo nessa versão crua cantada no alto do Château de Fontainebleau, na França.

9) Jair Naves – Maria Lúcia, Santa Cecília e eu (Jair Naves/Alexandre Xavier) – Não é fácil gostar de Jair Naves. Eu demorei um bocado. Suas canções são estranhas, sua voz é grave e sombria. Ele é um cara que dá um tiro na métrica em nome do discurso. São as letras que mais lhe importam, mas perceba que há também melodia, que se mostra aqui já na introdução, mesmo antes de entrar a voz. A letra é sobre si mesmo, sobre Deus, mas principalmente sobre sua mãe. E nem é preciso que a sua também se chame Maria Lúcia para que você se identifique com ela.

10) Chico César – Estado de poesia (Chico César) – Chico César apaixonado. Poucas coisa podem ser mais sublimes. No cd ele se acompanha na guitarra, e tem ao seu lado piano, baixo e bateria. Aqui ele está só com seu violão, com sua poesia e com sua melodia, na nudez em que provavelmente compôs a canção. Tudo ressoa ao amor que “dói de bom/arde de doce”. Como toda boa melodia.

11) Marcelo Jeneci – Pra gente se desprender (Marcelo Jeneci/Isabel Lenza) – Não tenho muito o que dizer sobre essa música. Apenas que me recolho humildemente à posição fetal ao ouvi-la.

 

*Luiz Felipe Carvalho é jornalista, colecionador voraz de CDs e escreve mensalmente sobre música na Central 3

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