Cine #145 Segue o Baile

O programa de hoje destacou o documentário Segue o Baile – Bixiga 70, filme de Rubens Crispim Jr. que acompanha a banda paulistana e propõe uma imersão sensorial diante do som – é uma das estreias do Festival In-Edit, que acontece de 12 a 23 de junho em São Paulo com uma série de filmes que tratam de música.

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Reflexões uruguaias

Acabo de passar quinze dias no Uruguai. Fiz uma viagem de carro, junto com minha namorada, que passou pelo clássico triunvirato Punta del Este-Montevideo-Colonia del Sacramento, mas que também se aventurou pelo interior, chegando até a cidade de Tacuarembó, “capital de la patria gaucha”, conforme está na placa que adorna a entrada da cidade – que também guarda outro segredo que contarei mais à frente. Mas antes de chegar ao segredo, dividirei algumas coisas que notei sobre a relação do uruguaio com a música.

Estávamos em um ônibus comum, de linha, em Montevidéu. Sem turistas, só uruguaios indo trabalhar, e nós dois indo conhecer a “ciudad vieja”, o centro histórico da cidade. Entra um homem na faixa dos quarenta anos, de tênis, bermuda jeans, camiseta vermelha, boné, uma pancinha proeminente e um amplificador. Coloca o amplificador no chão do busão, fala algumas coisas em espanhol (fácil de entender que nem russo), bota um acompanhamento mecânico no ampli e começa a cantar ao vivo uma canção chamada “Si te dijeron”, do compostior Victor Manuelle, que ficou famosa na voz do porto-riquenho Gilberto Santa Rosa (procura no Youtube que tem). Bela canção, um bolero bem “cornudo”, e uma puta voz bonita do rapaz. Ele cantava no fundo do veículo e virado pra frente, ou seja, com quase todo mundo (nós éramos uma exceção sentados no último banco) de costas pra ele. A sensação que dava é que geral estava cagando pra música, que cada um estava em seu próprio mundo, pensando no trabalho, mexendo no celular. Mas aí veio o espanto: assim que ele terminou de cantar, o ônibus veio abaixo (ok, talvez eu exagere) em aplausos. Sinal do respeito que o povo tem pela música, e pelos artistas. Além de aplausos o cantor recebeu dinheiro, inclusive alguns pesos nossos, e desceu do ônibus, aparentemente sem pagar, como uma cortesia do motorista. Coisa bonita.

Eu disse acima a frase “mas aí veio o espanto”, antes de falar dos aplausos, mas é um pouco mentira de escritor, porque nem foi tanta surpresa. Isso porque antes desse episódio, quando estávamos na cidade litorânea de La Paloma, fomos a um restaurante com música ao vivo. Ali a primeira surpresa foi o músico tocar uma música brasileira atrás da outra (me lembro de algumas coisas de bossa nova e muito Caetano Veloso, inclusive com a frase “um filhote de leão, “rajo” da manhã”). Mas a surpresa maior foi que todo mundo batia palmas pro músico ao final de cada canção. Em um lugar em que a pessoa está para comer, em que a música é só um bônus, isso é bastante raro de se ver – gente largando os talheres no meio da garfada pra bater palma. E não se tratava de um novo gênio da música uruguaia, era um rapaz comum, com uma voz comum e um violão comum. Bonito de ver.

Escrevi há pouco sobre “a primeira surpresa”, me referindo ao fato de o músico tocar brasileirices, mas escritor mente muito – e maus escritores contam que mentiram. Fato é que, antes disso, também na cidade de La Paloma, já tínhamos visto um DVD da Marisa Monte rolando dentro de uma loja de artesanato. O tal músico foi nosso segundo encontro com música brasileira na viagem. Mas não o último. Em Tacuarembó passamos umas duas horas em um café (tomando cerveja da Cabesas Bier) ao som de rap brasileiro, ouvindo um monte de coisas que eu nem sabia o que eram, além de bastante Gabriel O Pensador. Em Paso de los Toros, por onde passamos rapidamente, vimos uma molecada ouvindo “Vai malandra” da Anitta. E em Montevidéu suportamos um jantar inteiro ouvindo o primeiro cd (também inteiro) dos Tribalistas (que eu gosto, usei o verbo “suportamos” porque é cool falar mal dos Tribalistas).

Sobre o tal segredo da cidade de Tacuarembó, que talvez alguns já saibam: Carlos Gardel, o ícone do tango tão identificado com a Argentina, e que muitos acham que nasceu na França, na verdade é natural de Tacuarembó. Sim, isso ainda é motivo de controvérsia, mas a visita ao Museu Carlos Gardel é bastante eloquente ao afirmar que “El Mago” nasceu, sim, na cidade. Há até estudos comparando o rosto dele com os de seus supostos irmãos uruguaios. É famosa a frase do próprio Gardel, “nasci em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade” – o que já elimina a Argentina como seu local de nascimento. E o museu traz documentos e frases de Gardel que parecem não deixar dúvidas sobre donde veio à luz o Rei do Tango. Tacuaremboense, por supuesto!

Polêmicas à parte, a necessidade de “brigar” pela nacionalidade de um astro tão identificado com o país vizinho, somada à quantidade de vezes que ouvimos música brasileira durante a viagem, talvez, e apenas talvez, denotem que falta à música uruguaia alguma identidade própria, alguma luz que brilhe sozinha. Um país geograficamente tão pequeno, mas de caráter tão grande, e que tem um povo que respeita tanto a música, merece isso. E que fique claro que esta é apenas a análise superficial de alguém que ficou somente quinze dias no país – e que trouxe alguns cds na bagagem para descobrir o que é que o uruguaio tem.

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Experiências

Me sinto um tanto velho falando de algo que aconteceu comigo há vinte anos. Se fosse algo que aconteceu há vinte anos, mas que tem a mim como um personagem infantil, vá lá. Mas na estória que quero contar eu já tinha lá meus dezessete. Era 1997, ou 1998, não sei ao certo. Meu primeiro emprego com carteira assinada, na Livraria Siciliano – que já não existe mais, foi comprada pela Saraiva, olha a velhice aí de novo. Uma amiga que trabalhava lá ajeitou para que eu entrasse, e fui parar na sessão de CDs – essa ainda existe na Livraria Saraiva, sabe-se lá até quando.

Assim que fui admitido, a gerente me disse que o público que frequentava a sessão de CDs da loja era diferenciado, e gostava de música clássica e new age. Era, portanto, crucial que eu aprendesse o que podia sobre esses estilos para que passasse na experiência de três meses e me tornasse efetivo. Eu não fazia ideia do que fosse new age. Sobre música clássica, devo dizer que anoto todos os filmes que assisto desde muito novo, e acabo de descobrir que assisti “Amadeus” em 20/04/1996. Provavelmente isso era tudo que eu sabia de música clássica.

A loja ficava dentro de um shopping, eu tinha que trabalhar aos domingos, ganhava pouco, sentia a pressão do primeiro trabalho formal, mas no fim das contas estava dentro de um templo maravilhoso, que talvez eu não tivesse consciência na época de quão valioso poderia ser. Fato é que até acabei me inteirando um pouco sobre quem eram Enya, Loreena McKennitt, entre outros nomes da new age, mas não fiquei nada craque no assunto, muito menos em música clássica. Um pouco de indolência, é possível. Se sou indolente hoje, acho que “adolescente-quase-adulto” era mais ainda.

(Um aparte curioso: certa vez a gerente da loja me pediu para limpar o vidro que dividia a livraria da sessão de CDs. Me deu lá os apetrechos necessários, e eu fiquei com cara de “ué”. Ela perguntou se eu nunca tinha limpado um vidro na vida. Eu respondi que não.)

Não sei se foi o vidro ou minha falta de interesse em aprender o que era necessário para tão seleto público, mas o que se deu é que eu não passei na experiência de três meses, e fui mandado embora. Em meu lugar, me lembro bem, entrou um camarada chamado Leandro, que fazia parte do fã clube da Loreena McKennitt. Aí é covardia, quem, no Brasil, faz parte de um fã clube da Loreena McKennitt? Detalhe irrelevante: esse cara, além de me tirar o emprego, era ex-namorado da então namorada do meu irmão. Mas, verdade deve ser dita, era gente boa pra cacete, e não tinha culpa nenhuma de nada. Chegamos a trabalhar um tempo juntos, sem que o idiota aqui percebesse que estava de saída.

(Um aparte vingativo: pouco depois que saí da livraria passei num concurso público e segui minha vida. Voltei à Siciliano como cliente, e encontrei uma antiga colega, que me informou que a gerente da loja tinha feito o mesmo concurso que eu, mas não tinha passado. Não sei limpar vidro, mas sei passar em concurso, baby.)

Durante meu tempo na loja, uma das coisas mais legais é que tínhamos uma certa liberdade de colocar o que quiséssemos para ouvir. Claro que a preferência era por lançamentos que vendiam bastante (me lembro que o CD do Caetano, “Prenda minha”, aquele que tinha “Sozinho”, tocou até o cu fazer bico), mas havia espaço para brincar um pouco. Eu e um bom colega (que morava num bairro perigoso e me confessou que às vezes fazia aviãozinho pra traficante) adorávamos colocar um CD do Renato Teixeira. Certamente não era um campeão de vendas, mas sempre que ninguém estava olhando, lá íamos nós botar Renato pra cantar. E esse CD é, afinal, sobre o que eu quero falar.
Seu nome é “Um poeta e um violão”, e sabe aquela história dos dez discos pra levar pra ilha deserta? Esse certamente seria um dos meus. Considero uma obra prima da música brasileira, e vou tentar explicar brevemente o porquê.

Seu nome resume bem sua proposta: apenas Renato e seu violão. O conceito é radical, não há espaço para nenhuma outra intervenção. A impressão é que o artista está tocando ao seu lado. Algumas pequenas falhas do violão e da voz permanecem na mixagem, dando vida ao registro, e intensificando a sensação de proximidade. Mas além de ser um álbum conceitual na forma, também o é no conteúdo. Renato canta a vida do homem simples, do homem da terra, e da relação deste com a natureza. Mas não é preciso viver numa fazenda para se identificar. O disco também fala de amor. E mesmo quando fala de amor, existe simplicidade. Uma simplicidade genial, que traz versos como “Todo silêncio do mundo/ Não vale o segundo/ De um beijo”. Conceito nenhum se sustentaria se as músicas não fossem boas. E a verdade é que se trata de uma coleção de doze músicas irrepreensíveis (tá, pra não dizer que é irrepreensível, contesto a presença de uma versão em espanhol de “Tocando em frente”, que me parece deslocada no disco).

Não, não consegui trabalhar na Siciliano pelo tempo que eu queria. Sabe-se lá o que seria da minha vida caso tivesse continuado por lá. O efeito borboleta me traria a um lugar (simbólico e, quem sabe, físico) completamente diferente do que estou hoje, certamente. Mas, embora não tenha passado na “experiência”, esse disco valeu mais do que qualquer experiência. “Um poeta e um violão” foi o presente que eu recebi, muito maior do que os três salários mixos ou o mirrado FGTS.

O disco está inteiro no Youtube. Mas vou colocar aqui a música que eu acho que sintetiza o que ele é. Não por acaso ela contém o verso que para mim é o mais simbólico do cd: “Um homem simples que conhece a natureza/ Acostumou-se à beleza, vive disso e é feliz”. Tem uma música de Maiara & Maraísa chamada 10%, que é até divertida, e que tem 422.798.608 de visualizações no Youtube (17/01/2018 às 23:35). Esta que posto abaixo tem 61. Uma pequena defasagem que, com a força da Central 3, certamente será corrigida em breve.

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Versões

Qualquer artista ao conceber uma obra deve ter em mente que, uma vez tornada pública, aquela obra deixa de ser sua. Está aberta a interpretações, reinterpretações, versões, confusões e muitos outros “ões”. Em qualquer campo da arte isso se dá, mas especialmente os compositores de música popular devem ter um desprendimento maior em relação às suas crias. Não é tão simples reinterpretar uma peça de teatro, reimaginar um quadro, refazer uma escultura, recriar uma construção, reescrever um livro ou  refazer um filme (sim, eu fui ao Wikipédia pra ver qual era a ordem das sete artes primordiais. Aproveitando, me perdoe a extensão do conteúdo dos parênteses, mas acabei de descobrir que as Historias em Quadrinhos, consideradas a nona arte, são chamadas de Banda Desenhada em Portugal. Genial). Mas, à diferença das outras formas de arte, qualquer um que aprenda o básico de um violãozinho já consegue dar a sua interpretação, mesmo que mequetrefe, para sua canção preferida.

Versões mequetrefes à parte, é bastante comum dentro da música pop que um artista regrave as canções de seus pares. Aliás, ta é bastante comum dentro da música pop que um artista regrave as canções de seus pares lvez seja uma das poucas formas de arte em que pessoas que passam a vida recriando obras alheias tem o mesmo status de quem cria seu próprio trabalho. Podemos pensar em Frank Sinatra como um grande exemplo na música internacional, e Maria Bethânia aqui no Brasil. São artistas gigantescos, mas que não criaram, no sentido estrito do termo, nenhuma, ou quase nenhuma, das canções que cantaram.

Entre as versões, talvez o mais emblemático exemplo de como um artista pode mudar completamente a criação de outro seja a versão que Joe Cocker fez para “With a little help from my friends”, dos Beatles. Segue para quem não conhece a versão original da banda, lançada em 1967:

E aqui a espetacular versão, ou recriação, feita por Joe Cocker e lançada em 1969:

Parece outra música, e um ouvinte desavisado talvez demorasse a perceber que se trata da mesma canção. Mas nem sempre as novas gravações fogem tanto à ideia original. Na maior parte das vezes a melodia básica é mantida, e a mudança se dá mais nos arranjos. Para o estudo de caso aqui pretendido, escolhi arbitrariamente a canção “Don´t think twice, it´s all right”, uma das mais belas músicas de Bob Dylan – o que não é dizer pouca coisa. A canção abre o lado B do disco “The freewheelin”, que o artista lançou em 1963, quando tinha apenas 22 anos. Sua melodia é inspirada em uma antiga canção folk americana, de domínio público. Nada mais justo, já que estamos falando mesmo sobre reinvenções. Ouçamos, primeiro, a versão original de estúdio. Logo abaixo dela está uma tradução, feita com o inglês ameríndio deste que vos escreve, para ajudar àqueles que entendem menos inglês do que eu:

Não pense duas vezes, tá tudo certo

Bem, não adianta sentar e se perguntar, baby
Se até agora você não sabe
E não adianta sentar e se perguntar, baby
Nunca vai dar em nada, de qualquer jeito
Quando seu galo cantar no romper da aurora
Olhe pela sua janela e eu terei ido
Você é a razão de eu estar seguindo viagem
Mas não pense duas vezes, tá tudo certo

E não adianta acender sua luz, baby
Aquela luz que eu nunca conheci
E não adiantar acender sua luz, baby
Eu estou do lado escuro da estrada
Mas eu gostaria que houvesse algo que você pudesse fazer ou dizer
Pra me fazer mudar de ideia e ficar
Mas nós nunca conversamos muito, de qualquer modo
Mas não pense duas vezes, tá tudo certo

Então não adianta chamar meu nome, garota
Como você nunca fez antes
E não adianta chamar meu nome, garota
Eu não posso mais te ouvir
Estou pensando e imaginando, enquanto ando pela rua
Certa vez amei uma mulher, ou uma menina, me disseram
Eu dei a ela meu coração, mas ela queria minha alma (ei, esse é um dos versos mais lindos da música pop!)
Mas não pense duas vezes, tá tudo certo

Até mais, minha querida
Pra onde eu vou não posso dizer
Adeus é uma palavra bonita demais
Então só vou dizer “passar bem”
Não estou dizendo que você me tratou mal
Você poderia ter feito melhor, mas não me importa
Você só meio que desperdiçou meu precioso tempo
Mas não pense duas vezes, tá tudo bem

(Uma coisinha: há quem se diga poeta e que daria o braço esquerdo pra escrever isso que Bob escreveu quando tinha perto de vinte anos. Outra coisinha: o próprio Dylan mudou um pouco a letra quando começou a cantar a música ao vivo, e é essa versão que a maioria dos artista que fizeram covers usaram. Mas as mudanças não são substanciais, e estão em apenas dois versos.)

Nada melhor do que começar esse passeio por Joan Baez, uma espécie de “irmã espiritual” de Bob no começo dos anos 1960. Ambos dividiram palcos, e camas, e eram considerados rainha e rei da folk music. A versão de Baez é delicada como sua voz, e é curioso notar que ela não muda o gênero da musa da canção.

Virginianos adoram ordens cronológicas, então vou fugir dessa armadilha e partir para a versão feita por um dos queridinhos do momento, o inglês Ed Sheeran. O vídeo foi gravado para a TV francesa, e mostra o astro sozinho ao violão, em uma versão bastante parecida com a original. Ele muda um dos versos, e diz “mas você não está me escutando, de qualquer modo”, ao invés de “mas nós nunca conversamos, de qualquer modo”. E também inverte duas estrofes, deixando para o final aquele que eu pontuei como um dos mais belos versos da música pop na tradução aí acima.

Outro que não poderia faltar é Johnny Cash, que ao longo da carreira gravou diversas canções de Bob, sempre usando seu timbre único e trazendo as canções para seu universo. Estilo não falta a Cash, e é algo que muitos artistas passam a vida procurando sem encontrar. A versão está no disco Orange Blossom Special, de 1965.

Voltando aos tempos modernos, a norte-americana Kesha gravou uma versão para um álbum tributo a Bob Dylan, lançado em 2012. Sua interpretação é quase toda à capela, com alguns incursões de teclado e violoncelo. É uma bela versão, embora o choro ao final pareça um pouco cafona.

Com uma pegada mais rock, o vocalista da banda punk Social Distortion gravou a canção em seu disco solo Cheating at Solitaire. Ficou divertido, embora a música perca parte de seu charme melancólico.

Dolly Parton, a grande estrela da música country norte-americana, fez sua versão da música em 2014. Ao contrário de Joan Baez, Dolly mudou o gênero e transformou a “she” em um “he”, além de ter mudado um verso, transformando “certa vez amei uma mulher, ou uma menina, me disseram” em “certa vez amei um homem, mas aquele amor envelheceu”.  A versão é bem animada, na linha do country moderno.

Tem latinidade também nessa história. O norte-americano de ascendência mexicana Trini Lopez, que fez sucesso mundial com a música La Bamba nos anos 1960, também gravou a música com seu estilo bem ritmado – dá até pra tocar em festa de casamento que vai fazer sucesso.

Como curiosidade para os amantes da série The Walking Dead, a canção foi usada em um episódio da sétima temporada, em uma bonita versão em coral, cantada pelos cantores da Georgia State University Singers.

Deixei por último minha cover preferida, feita pelo relativamente pouco conhecido cantor norte-americano Brook Benton e lançada em 1970. Com um arranjo suave, mas presente, com bom uso do orgão e uma voz aconchegante e versátil, Brook fez a versão mais acalentadora de uma canção que é sobre despedida. Um paradoxo que aqui é traduzido em deleite.

Ninguém jamais vai (acho) reescrever “Lolita”, de Vladimir Nabokov. Mas é possível recriar de inúmeras maneiras “Don´t think twice it´s all right”, de Bob Dylan, como pode ser visto aí acima. Cada nova versão traz uma energia diferente, muitas vezes até contraditória ao que o artista original pretendia. Essa é uma das delícias dessa forma de arte que pode parecer superficial para muitos, mas que pode trazer em poucos versos, ou num acorde de guitarra, todos os sentimentos de um romance inteiro. Eu só li Lolita uma vez, mas poderia passar um bom tempo ouvindo a mesma boa canção repetidas vezes. Aliás, acho que vou fazer isso agora mesmo…

 

*Luiz Felipe Carvalho é jornalista, colecionador voraz de CDs e escreve mensalmente sobre música na Central 3

 

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À deusa melodia

*Por Luiz Felipe Carvalho 

Minha deusa primeira é a melodia. Estamos no terreno pagão da música pop, o que me permite ter vários deuses e deusas de adoração. Tenho, por exemplo, a letra como minha deusa segunda. E adoro todas as outras entidades, como a harmonia, o ritmo, a voz, um instrumento bem tocado, entre tantas outras magias que fazem da música popular a maior invenção da humanidade em todos os tempos. Não, não é o avião nem o pão que já vem fatiado.

A melodia é aquela parte da canção que é a mais simples e a mais complicada. Não é preciso nenhuma formação musical para fazer uma melodia. Você, que acha que não é capaz de fazer música, está duvidando? Comece a assobiar qualquer coisa aí, sem pensar em nada que conheça. Não sabe assobiar, serve um “nananá”. Pronto, temos uma melodia novinha. E aí é que entra a parte complicada. Fazer com que esse encadeamento de notas musicais seja belo, duradouro e cativante é o maior talento que um compositor pode ter. É, no mais das vezes, o que vai determinar se a música será um sucesso ou um fracasso. Basta ver a qualidade das letras e o ritmo bastante semelhante da maioria dos sucessos da nova onda do sertanejo, para ficarmos em apenas um exemplo. Afora todos os componentes variáveis (sorte, bom empresário, o Neymar ser fã, etc), o que os diferencia é a melodia. Aquele refrão cativante, mesmo que não diga nada que outros não digam, sela a sorte de uma canção.

Volto a mim. Acho que o Chico Science & Nação Zumbi é uma boa banda para exemplificar o que sinto sobre isso. Tenho um puta respeito pelos caras, pelas letras e postura políticas, pela pequena (pequena?) revolução que causaram na música brasileira, pelas performances ao vivo – especialmente do falecido Chico. Eles são muito bons. Mas não é o tipo de música que eu coloco para ouvir sempre. As melodias são mais secas, o foco é muito mais no ritmo e no discurso. O mesmo se dá com o metal mais pesado. Ouço, gosto de algumas bandas, mas não é minha trilha sonora.

Gosto de imaginar as notas musicais de uma melodia como que dançando no vazio. E de fato, tecnicamente, elas estão. Detesto professar falsa erudição, então aviso de cara que não entendo lhufas de música clássica/erudita. Mas para mim a melodia que mais ilustra esse conceito vem de Tchaikovsky, em seu concerto para piano número um. Não conhece? Claro que conhece. É esse aqui, ó:

Voltando à música pop, o casamento perfeito é de uma grande melodia com uma ótima letra. Como todo casamento perfeito, esse não se encontra em toda esquina. É algo raro, mas que quando acontece ilumina tudo ao redor. Eu realmente, ou ingenuamente, acho que ouvir uma dessas pode fazer a diferença entre apertar ou não o botão da bomba atômica – literal ou metaforicamente.

A partir de agora listarei onze canções que são exemplos dessa junção. Para diminuir meu leque de possibilidades, e não enlouquecer ao escolher apenas onze (tanto que era pra ser dez e aumentei pra onze), me ative a canções que conheci nos últimos tempos, num período de um ou dois anos pra cá.

1) Wado – Canto Dos Insetos (Wado/Momo/Cícero) – “Cantos dos insetos” é minha canção preferida do álbum Vazio Tropical, de Wado. A revista Rolling Stone fez uma crítica sobre ele, e nela o crítico Pedro Henrique Araújo cita nove músicas do disco, de um total de onze. Nenhuma delas é “Canto dos insetos”. Talvez exista algo de errado comigo – ou com Pedro. Só sei que versos como “não quero você, nem ninguém/ se não for agora”, me encantam, mas a melodia embalada pelo violão de Marcelo Camelo, que produziu o trabalho, me encanta mais ainda.

2) Vampire Weekend – Obvious Bicycle (Rostam Batmanglij/Ezra Koenig) – Um exemplo de como uma boa melodia se basta com um arranjo simples. A bateria praticamente só marca o tempo. O teclado faz incursões suaves. O baixo é discreto. Esta versão ao vivo ressalta ainda mais esse minimalismo, refletido no simples refrão: “então ouça: não espere”. Quatro palavras, precisas e preciosas. Mas eu adoro também os versos “tenha em mente aquela lista de quem agradecer/e não se esqueça dos ricos que foram bondosos”.

3) Regina Spektor – Firewood (Regina Spektor) – “Firewood” é uma obra-prima. É a junção perfeita entre letra e melodia à qual me referi. Se você entende um pouco de inglês e não sentir nada ao ouvir a música, talvez seja caso de procurar um médico. Aliás, é sobre camas de hospitais que a música trata. “Levante de sua fria cama de hospital/Estou te dizendo, você não está morrendo”. Triste? Sim. Mas estranhamente esperançosa. Afinal, “o piano ainda não virou lenha”. A mensagem é: enquanto viver, viva, brigue, esperneie para se manter vivo.

4) Laura Marling – Once (Laura Marling) – Na versão que selecionei para essa canção, sua autora se acompanha apenas ao violão. É o grande teste de qualquer canção. Uma grande voz ajuda, cílios enormes também, mas o triunfo é da melodia. Esqueçamos que ela está no Royal Albert Hall e imaginemos apenas uma trovadora e seu violão pelas ruas de alguma cidade na Idade Média.

5) Irene Bertachini – Dia bom (Irene Bertachini/Gustavo Amaral) – Conheci essa música no programa Sr. Brasil da TV Cultura, em uma versão singela com voz e violão. Essa versão não está disponível no YouTube. Esta que aqui apresento se assemelha mais à versão barroca do cd da artista, com 400 mil instrumentos diferentes. Não importa. O encanto permanece. Não se deixe abater pela introdução lúdica de mais de um minuto, porque a recompensa virá, na forma de uma letra e de uma melodia que traduzem a infância como poucas outras. A mãe e o pai descritos na letra são os meus – e eu espero que ao menos um dos dois seja também o seu.

6) Death cab for cutie – Hold no guns (Benjamin Gibbard) – “Meu amor, por que você corre?/ Minhas mãos não carregam armas”. Com uma melodia que traduz fielmente os sentimentos de sua letra, essa deve ser uma das cinco músicas que mais ouvi nos últimos dois anos. E não porque eu tenha passado pelo que descreve a letra, que é um fim de relação, em que se pergunta “pra quem você vai ligar na noite mais fria do inverno?”. Mas porque ela é linda mesmo. Não há registro ao vivo da banda tocando a canção, mas encontrei um cover bem decente de um tal Kyle Langdon, direto da Carolina do Norte, que é bem fiel ao original.

7) 5 a seco – O sonho (Pedro Altério/Tó Brandileone) – Assistindo ao vídeo chega a ser impressionante que meninos tão novos tenham feito uma coisa tão profundamente bonita. Ainda mais sendo uma canção que fala sobre a relação de um pai com sua filha que vai “sair de casa e se atirar na noite fria”. Não, eles não tem filhas que se atiram na noite fria. Mas eles intuem precisamente o que pode ser isso. O verso “só conte comigo pra tudo, todo dia” entrou na galeria dos meus preferidos de toda a vida.

8) Jack White – Entitlement (Jack White) – Meu irmão praticamente me obrigou a ouvir o disco Lazaretto, de Jack White. Fez bem. Minha canção favorita do álbum é, para mim, um exemplo perfeito de uma das maiores instituições da música pop: o refrão. Desde a primeira vez que o ouvi, consegui imaginá-lo sendo cantado daqui a duzentos anos, em uma homenagem qualquer à música feita nesse começo de século XXI. E essa força fica evidente mesmo nessa versão crua cantada no alto do Château de Fontainebleau, na França.

9) Jair Naves – Maria Lúcia, Santa Cecília e eu (Jair Naves/Alexandre Xavier) – Não é fácil gostar de Jair Naves. Eu demorei um bocado. Suas canções são estranhas, sua voz é grave e sombria. Ele é um cara que dá um tiro na métrica em nome do discurso. São as letras que mais lhe importam, mas perceba que há também melodia, que se mostra aqui já na introdução, mesmo antes de entrar a voz. A letra é sobre si mesmo, sobre Deus, mas principalmente sobre sua mãe. E nem é preciso que a sua também se chame Maria Lúcia para que você se identifique com ela.

10) Chico César – Estado de poesia (Chico César) – Chico César apaixonado. Poucas coisa podem ser mais sublimes. No cd ele se acompanha na guitarra, e tem ao seu lado piano, baixo e bateria. Aqui ele está só com seu violão, com sua poesia e com sua melodia, na nudez em que provavelmente compôs a canção. Tudo ressoa ao amor que “dói de bom/arde de doce”. Como toda boa melodia.

11) Marcelo Jeneci – Pra gente se desprender (Marcelo Jeneci/Isabel Lenza) – Não tenho muito o que dizer sobre essa música. Apenas que me recolho humildemente à posição fetal ao ouvi-la.

 

*Luiz Felipe Carvalho é jornalista, colecionador voraz de CDs e escreve mensalmente sobre música na Central 3

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Belchior comparece ao seu compromisso inadiável

*Por João Carlos Cunha

O que imaginamos de nossas vidas? A esta pergunta Belchior tentou o tempo todo responder. Através de suas belas canções e arranjos magníficos, os quais não tem sentido na boca de mais ninguém. Não existem intérpretes para as músicas de Belchior, justamente porque não cabe interpretação, mas imaginação.

Hão de concordar que o ponto alto de Belchior é a obra Alucinação. Não é apenas um disco, com lado A e lado B. Não há ali apenas mera formalidade sequencial de canções. O que reside naquela cerca de meia hora é um tratado sobre a condição humana. É uma espécie de contra-contra cultura.

Belchior assina de cabo a rabo algo que nem ele mesmo imaginaria tantos anos depois. Naquelas músicas o cearense faz questão de cometer um “musicídio” desde o começo. Não tem canção correta, branca, nem muito limpa, nem muito leve… e que não fira. É preciso ferir, para Belchior a arte só serve se machucar alguém. E ele faz questão de mensurar toda a arte a ferir, indicando quem deve ser visibilizado; esmagando conceitos bobos de uma época que se travestia de forma pacífica para o combate. Porém, qual combate deve ser pacífico? Se há violência contra mim, que eu exerça violência contrária e proporcional, na medida das armas que disponho.

A música de Belchior, a sua própria Alucinação (em maiúsculo pois ela é categoria de pensamento do cantor), é um chamado a viver a experiência com as coisas reais. É um grito contra a gabinetização com as quais a gente inteligente tenta resolver os problemas reais, de pessoas reais: de pretos, pobre, estudantes, mulheres sozinhas…

Falta viver e se viver. Viver a si próprio. De retirante a mágico, Belchior nos demonstra que o sol não é tão bonito para quem vem do Norte e vive na rua, passa fome. Não há como lutar por dias melhores se Sampa é violenta e o Rio engana. É violenta contra nós e nos engana, que caímos pela lei de Newton, em grandes cidades, como se as nossas capitais fossem meros acessórios territoriais.

Demonstrando como nos sustentamos através de enlatados oriundos do sudeste brasileiro, Belchior faz questão de dizer que não adianta cantar como se quer, se tudo pode se transformar em produto. Marxista ou não, Belchior não quis alienar-se. E criticou a alienação. Era um sujeito perigoso esse rapaz latino americano.

Tão perigoso que mesmo depois de tantos anos sem dar notícias, precisava reaparecer. Ele não queria, foram atrás dele. Nossa sociedade necessita de sujeitos perigosos, classes marginais; sem elas como cultivaremos o medo que sustenta todo um sistema punitivo repressivo e violento?

Ele já havia alertado que viver é que é o grande perigo

Belchior sumiu, diziam os meios de comunicação, mal sabendo eles que, na verdade, ele está aí o tempo todo. Em todo lugar e em lugar nenhum.

Agora de uma vez por todas.

Belchior lutou para não ser. Ele não queria ser. Ele não poderia ser como nossos pais e vestir velhas roupas coloridas.

Já sabemos seu paradeiro, Belchior está um pouquinho em cada um de nós, que sofre abertamente para tentar mostrar que existe muito mais além da simples compilação de sotaques, ritmos e paisagens.

Vai Belchior, você tinha compromisso a noite e não poderia faltar por causa de nós.

 

*João Carlos Cunha é maranhense, mestre em direito e faz parte do conselho editorial do Baião de Dois, da Central3.

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