“É o sistema”

O dia estava bem mais ou menos. Monotonia cotidiana. Mensagens filosóficas, sentimentais e os memes do dia no Whatsapp. Um amigo do trabalho que pede uma ajuda que não vai atrapalhar muito, o chefe que tem lembra de uns prazos e vamos que vamos no meio de uma semana que mistura calor, frio e umas boas risadas. Contratempo nenhum até então. Mas o ventou virou.

Durante o almoço veio a lembrança das contas para pagar e voltou a mente a recordação de ser um homem de Neanderthal para assuntos bancários. Não uso a internet e nem aplicativos para transações financeiras. Sou daquelas pessoas que esfregam a barriga no caixa eletrônico, espera aquele fiozinho de luz vermelha aparecer e coloca o código de barras embaixo. Nada contra a tecnologia, é só mais um método de sair da inércia em frente ao computador e fazer uma caminhada após a refeição do meio do dia. Médicos recomendam.

A conta do condomínio estava um dia atrasada, coisa que acontece com que recebe o salário integral no dia 21 de cada mês. Ah data miserável! Pois bem, lá vai eu puxar fichinha e esperar para ser atendido na boca do caixa por um atendente. Acredito que exista jovens com menos de 20 anos que nunca fizeram essa ação na vida. Mas até chegar lá, há de ser passar pela bendita porta giratória. Muito mais do que ser uma divisória entre a parte de dentro e de fora de uma agência bancária, esse rito de passagem é acontecimento social e antropológico. Ainda mais se você for negro.

Lá vou eu, lá vou eu, sem festa nenhuma na avenida. Aquela semiconcha de acrílico que fica presa na porta de vidro blindado recebeu minha carteira e meu celular. O artefato de guardar dinheiro só tinha papel e plástico. Travou. O guarda negro de roupas pretas por trás da superfície transparente mandou eu voltar até a linha amarela. Obedeci o jogo de cores. Tentei a operação novamente e… travou de novo.

O senhor do outro lado encostou inocentemente na arma que estava na cintura e pediu para que eu mostrasse os bolsos. Puxei o tecido da parte interna da calça e só tinha contas a pagar. Retornei a linha amarela mais uma vez e…Travou. Na quarta tentativa ocorreu um passe de mágica e a porta da esperança que dá voltas no próprio eixo destravou. Sorriso nenhum transparecia na minha face, mas o segurança me mostrou os dentes e soltou: “Não tenho culpa, é o sistema”.

Resposta mais sincera e simbólica não poderia haver. Sim, é esse sistema que propaga o medo aos quatro ventos. Um negro de calças largas, em um bairro nobre como Itaim Bibi, querendo adentrar uma agência bancária sozinho no horário pós-almoço é um perigo real para sociedade. Vocês não acham? O bairro citado nesse parágrafo merece uma crônica futura só sobre ele, mas deixo aqui um spoiler: me acho o centro do universo por ser único ser de dreads na Joaquim Floriano ao meio dia. É momento que todos os olhos quem me veem nessa rua fazem questão de me encarar com espanto. Estamos em agosto de 2018. Pasmem.

Mas voltando a história da porta que roda, é o sistema, segurança-irmão-de-cor, que nos coloca nessas posições. Você aí do outro lado na missão de segunda a sexta parar sujeitos feitos eu que querem adentrar seu local terceirizado de trabalho. Você acredita que não tem culpa, e talvez nem tenha mesmo. Quem sabe não seja melhor a gente jogar a culpa em que inventou a tal giratória. Ou no miserável que mandou instalá-las.

É o sistema, esse monstro invisível que nos esmaga diariamente e que tenta tirar o que nos resta de dignidade. As pessoas que souberam do ocorrido vieram se solidarizar a mim e até perguntaram se eu estava com raiva. Sinceramente o sentimento é outro e nem sei se consigo nominá-lo. Mas não tenho dúvidas que ele não é bom e está contra tudo isso que chamam de sistema.

Resposta da instituição bancária depois que relatei o fato nas redes sociais

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Estádio, onde a homofobia joga para quebrar

De repente, me deparo com uma postagem no Twitter de um amigo que reclama dos gritos insistentes de “Bicha!” no estádio de futebol. Eram direcionados por sua torcida ao goleiro do time adversário. Novidade nenhuma o tal grito. Futebol, a gente sabe como é. O cara é hétero e disse que ofensas assim não cabem mais nem no futebol, que chega de incentivar um ranço que amola a faca da violência e da baixa autoestima. Não no goleiro. Se for hétero, sai na ducha do vestiário. Mas em quem realmente é homossexual e mais uma vez se vê vendido como ofensa.

Veio uma goleada contra a reclamação. “Mimimi”, “o mundo tá chato”, “tire o politicamente correto do futebol”, “é para desestabilizar mesmo. Teve um outro que questionou por que o grito de “Bicha” seria tão importante para a torcida. Novamente, respondido com as expressões memes de sempre.

Arrisco a resposta com o “é para desestabilizar mesmo”. Ou seja, se sabe que é pedrada, que mesmo quando negam ser só brincadeira, sabem que é pedrada.

A ofensa homofóbica é um utensílio multiuso. Não só magoa o ofendido, o desestabiliza, como fortifica o ofensor, o promovendo. Reforça que o normal, o aceito, o perfeito, é o hétero.  E que agredir homossexuais é legítimo e moral.

O estádio é um espaço importante para os homens. Onde eles se acumulam, extravasam, são cúmplices e se reconhecem. Onde socializam. Onde se constroem e se exageram como homens, como héteros, como os que ocupam o topo da hierarquia das masculinidades.

O futebol embute competição, que lembra combate, guerra, que sugere violência, que acaba, vez por outra, chegando na briga mesmo.  “Time de guerreiros”, “Zagueiro macho”. Tudo que remete ao homem, à macheza. Tudo o que honra. “Boneca”, “mulherzinha”, “bicha”. Tudo o que remete à mulher, á feminilidade, à homossexualidade.

No estádio, o homem reforça que homem nem de longe pode lembrar nada que não seja viril, macho alfa. A aversão a gays é valorizada e estimulada. Ela valida que o cara não gosta, não aprova, passa longe daquela vergonha.

A amizade entre os homens obedece a sinais vermelhos. Nada que comprometa. Tudo dentro da masculinidade padronizada. Abraços, apertos de mão, gestos, qualquer palavra, qualquer toque são milimetricamente medidos.

Torcer é respeitar muitos significados. É exceder um limite aqui, mas frear diante de outro. Beber muito? Pode. Se jogar na piscina após um título conquistado? Pode. Xingar o oponente de viado? Pode. Ter um jogador gay no elenco? Nunca.

“Não sou homofóbico, mas viado aqui não.” Determinaram: estádio é para héteros. Mais que héteros, para os machos alfa, os líderes da espécie. Há hierarquia nas masculinidades. “Corno” também é menor. “Donzelo” idem. “Filho da puta” o mesmo.

Nessa régua, o gay vem lá na lanterna. O que é não é aceito ou aceito como gozação. É tido como o homem fake, o que envergonha, o que peca. Não importa se tem comportamento másculo ou não. Não importa se é enrustido. Nem se é bolsominion.  É um subalterno, um não homem. Assim determinaram os juízes.

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