A música e o trabalho.

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*Por Luiz Felipe Carvalho

Longe de mim querer me meter na horta de Fernando Vives e Caio Quero, que comandam o podcast “Travessia” aqui na Central 3, e a cada semana didaticamente passeiam pelo que de melhor a música brasileira produziu sobre um determinado tema. Em 2016, inclusive, a dupla superdinâmica fez um programa sobre trabalho, que você ouve aqui. O tema anda rondando minha cabeça por conta de uma certa reforma lá em Brasília que está nos mandando algumas décadas, ou séculos, de volta no tempo. Sem a pretensão de esgotar o tema, deixem-me pontuar como alguns artistas, ao longo do tempo e da música, trataram do assunto. Uma canção em especial me despertou a vontade de falar disso, porque dias atrás a ouvi e as lágrimas me encheram o rosto. Mas falarei dela mais pra frente. Sempre que possível as canções em inglês trazem vídeos com legendas em português.

O primeiro artista que me vem à cabeça é Bruce Springsteen, que tantas vezes falou sobre a classe trabalhadora americana. E, particularidades à parte, falar sobre a classe trabalhadora de um país é falar sobre todas. Em “Factory”, que faz parte do álgum “Darkness on the edge of town” (1978), Bruce fala do cotidiano do trabalhador de fábrica, que todo dia acorda cedo e segue a mesma rotina, começando pelo apito que anuncia o início da labuta diária. O verso mais significativo é “a fábrica tira sua audição/a fábrica lhe dá vida”, mostrando em poucas palavras a complexidade da relação entre o operário e seu trabalho.

Para provar meu ponto sobre a semelhança entre trabalhadores cá e acolá, nosso Noel Rosa também fez uma canção em que fala dos apitos de uma fábrica. Não é exatamente um canção sobre trabalho, mas sobre ciúmes. Noel escreveu sobre um homem (ele mesmo, dizem) que sente ciúmes de sua namorada que todo dia vai trabalhar em uma fábrica de tecidos. A frustração com a moça fica explícita quando ele diz “você que atende ao apito de uma chaminé de barro/ porque não atende ao grito tão aflito da buzina do meu carro?”. A versão abaixo é com Tom Jobim, mas há diversas outras gravações (Aracy de Almeida, Maria Bethânia, etc).

John Lennon já futucava assuntos políticos antes mesmo do fim dos Beatles, mas o desbunde de fato aconteceu depois disso. Em seu primeiro álbum pós-Beatles ele gravou “Working class hero”, uma canção simples, em que ele se acompanha ao violão, ao estilo de Dylan no começo da carreira. A letra fala sobre o homem comum e oprimido pelo sistema. Nesse contexto, o refrão, curto e grosso, apenas diz “herói da classe trabalhadora é algo para ser”. Ao final, Lennon toma para si a responsabilidade ao dizer “se você quer ser um herói, apenas me siga”.

Nosso Zé Geraldo também falou com imensa propriedade sobre as relações trabalhistas na impagável “Banquete de hipócritas” (1998). Com uma letra simples, curta e de duplo sentido, Zé desvenda a cadeia de poderes que se locupleta nas costas do trabalhador. Não há muito o que acrescentar ao que ele disse – tampouco o que contestar. Observação: repare na escolha das imagens no vídeo abaixo para representar cada um dos personagens da canção.

A profissão mais antiga do mundo não ficou de fora do alcance dos compositores. Elton John e seu parceiro Bernie Taupin fizeram isso com maestria, e na mesma tacada ainda trataram dos marinheiros. Falo de “Sweet painted lady”, canção que abre o lado três do álbum duplo “Goodbye yellow brick road” (1973). Na letra o eu-poético é um marinheiro, com pouco tempo em terra para satisfazer seus desejos. A dupla de compositores consegue extrair poesia daí, embora acusações de misoginia possam surgir aqui e ali. Em minha opinião, tanto letra quanto melodia refletem a melancolia dessa relação, que vem da necessidade de carinho de uns, e da necessidade material de outras. “Nós deixaremos o aroma do mar em suas camas/Onde amor é só um trabalho e nada é dito”. Mais bonito, e triste, que isso não fica.

São tantas as canções falando sobre o próprio ofício de ser músico(a) que vou me abster, arbitrariamente, de colocar alguma aqui. Mas há outras diversas músicas que tratam de outros campos de atuação artística, e entre elas destaco “O país das atrizes”. Oswaldo Montenegro a compôs e incluiu na trilha sonora de seu musical “Aldeia dos Ventos”, lançada em LP no ano de 1987. A letra trata com lirismo do ofício de se transformar em outras. Quem canta, com rara delicadeza, é Glória Pires, que com sua voz de menina (ela tinha vinte e poucos anos quando gravou) traz leveza a versos como “o rosto da pessoa que eu quero ser/está em cada rosto que eu me pintar”. Repare no barulhinho da agulha no vinil!

Chico Buarque tratou diversas vezes do trabalho em suas canções (“Pedro pedreiro”, “Construção”, “Vai trabalhar, vagabundo”, entre outras), mas destaco aqui a bem-humorada “Ela é dançarina”, lançada no LP Almanaque (1981). A música fala da relação sem rotina, porque incompatível em seus horários, entre um funcionário e uma dançarina. A letra não deixa explícito, mas como ele bate ponto e abre o guichê, provavelmente é um funcionário público. São hilárias as incongruências na agenda do casal apontadas pela letra, como no trecho “quando eu tchum no colchão/é quando ela tchan no cenário/ela é dançarina, eu sou funcionário”.

Zé Geraldo ficou nacionalmente conhecido pela música “Cidadão” (composta por Lúcio Barbosa). A letra da canção traz o ponto de vista de um trabalhador, vindo do nordeste (a letra fala em norte mais como indicação geográfica do que como região), que trabalha na construção civil e não consegue usufruir dos prédios que ajuda a levantar – uma contradição típica do capitalismo. À parte um certo proselitismo religioso em sua parte final, a letra tem uma mensagem poderosa e acessível, valorizada pela bela melodia. Foi gravada por vários artistas além de Zé Geraldo, como o xará Zé Ramalho e Renato Teixeira, mas ganha dramaticidade e sentimento na voz de Luiz Gonzaga, dono da versão aqui abaixo. Gonzagão a gravou em seu disco “Aquarela Nordestina” (1989), o último lançado em vida, já que o mestre morreria no mesmo ano.

Me encho de prepotência imaginando que o leitor está querendo saber qual é, afinal, a música que me fez chorar a reboque da reforma trabalhista. Mesmo que não esteja, dizer-lhe-ei, para emular o mesoclítico responsável por tal reforma (que, acabo de saber, foi pego com batom na cueca). Trata-se de uma canção que nem sequer fala de trabalho formal, daqueles com salário no fim do mês ou coisa parecida. Fala do povo brasileiro mais invisível a nossos olhos, aquele que não tem pra si nem mesmo o mais indispensável dos elementos: a água. Um povo de quem nunca ninguém se ocupou, e para quem migalhas são vistas como privilégios, como se para ele fosse injusto o próprio benefício de viver. Um povo cujo grito é tão eloquente que nos escapa aos ouvidos. “Que piegas!”, você pode dizer. Acho que não. Em verdade acho que nem comecei a tocar a superfície do real problema, aqui da segurança do meu teclado, pertinho de uma torneira que jorra água ao meu comando.

A canção se chama “A força que nunca seca”, e foi feita por Vanessa da Mata em parceria com Chico César. Não sei quem fez letra e quem fez música, mas conhecendo o trabalho de um e de outro, chuto que a letra é de Chico e a música de Vanessa. Mas posso estar redondamente enganado – ou só um pouco. Foi essa música que fez Vanessa ficar conhecida como compositora, já que Maria Bethânia a gravou em 1999 – no disco que, não por acaso, se chama “A força que nunca seca”. Chico César também fez seu registro no mesmo ano, em seu álbum “Mama Mundi”. Vanessa só viria a gravá-la em seu álbum de estreia, em 2002. Mas é dela a versão que me fez chorar, e que considero a mais bela. Bethânia é mais cantora que Vanessa. Chico toca mais violão. Mas gosto da solenidade no arranjo de Vanessa, que faz a letra se sobressair, e a melodia ficar mais límpida.

Abaixo segue primeiro a versão em estúdio de Vanessa. Optei por um vídeo sem imagens, já que a própria letra já é repleta delas, que podem ser preenchidas por nossa imaginação. Sugiro, inclusive, fechar os olhos ao ouvir (mas quem sou eu, pode ficar de olho aberto se quiser). Depois seguem as versões de estúdio de Maria Bethânia e Chico César, para você formar sua opinião sobre qual é a melhor. De chorinho, Vanessa cantando a música se acompanhando ao violão, num clima bem informal.

Se você chegou até aqui ouvindo todas as canções, gastou certamente mais de meia hora de sua vida. Agradeço a deferência. Agora pode ir trabalhar. Ou não.

 

*Luiz Felipe Carvalho é jornalista, colecionador voraz de CDs e escreve mensalmente sobre música na Central 3

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2 comentários em “A música e o trabalho.”

  • Li todo texto e achei maravilhoso, ouvi todas as canções , me emocionei e ganhei 30 minutos de conhecimento sobre a relaçao das canções com o mundo do trabalho. Sou fã dos seus textos. Parabéns! !!!

  • Regina Aurea Pereira disse:

    O corpo que entorta pra lata ficar reta é o mesmo que fica surdo na fábrica que lhe dá a vida…Sem nome como a garota pintada para quem o amor é um trabalho e cujo rosto eu quero ser…

    Músicas e texto lindos para uma realidade triste.

    Ah! Prefiro a Bethânia.

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