O futebol de primeira em Buenos Aires

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*Por Gustavo Mehl

Última rodada da segunda divisão do Argentinão 2016/17. Chacarita Juniors x Argentinos Juniors. Os dois primeiros da tabela, um jogando em casa precisando do resultado pra subir depois de sete anos, o outro já campeão, garantido na A. Dois clubes centenários de Buenos Aires, tradição, história, torcida.

O trem parou quando faltava uma hora e meia pro jogo. Nós saltamos com bom grau de cautela. Ver o Chacarita em San Martin não é exatamente seguro, alertaram. Mas confiantes, tranquilos, a experiência de estádio ajuda, talvez mais ainda quando se vem do Rio de Janeiro ou de Medellín. Nas nossas conversas, um certo orgulho torto por ostentar uma pós-graduação em situações de rataria. “Argentina juega en la B en delincuencia, cierto?”, disse pra mim o Parce, soltando uma gargalhada. E aquele friozinho na barriga, passos rápidos por dentro do bairro.

Ingresso comprado sem sobressaltos na bilheteria, 500 malandros ao lado da janelinha pedindo aquele troco pra completar o seu. Voltamos umas quadras. Butiquim da beira da estação quebrando a lei seca defronte à polícia, vendendo litrão de Quilmes em garrafas pet de refrigerante. Chuva. Várias malandragens pela rua, várias famílias também, muitas crianças, muitas mulheres, muitos senhores de idade. Todos em preto, branco e vermelho. A gente, claro, vestiu as cores, abraçou o time, “¡señores soy del funebré!”, bem mais divertido. Sem palhaçada, com respeito.

Misturamos e formamos uma fila de entrada que se estendia por uns três quarteirões, fila longa e devagar quase parada. Até que parou mesmo. Do nada a cavalaria fecha o acesso, minutos antes do jogo. Um homem com o filho no colo argumentou com revolta. “Lotou. Não quero saber. Tenta do outro lado”, respondeu em porteño violento o cara do alto da montaria, o que estava de capuz preto, só os olhões vidrados pra fora. A multidão iniciou uma sessão de ofensas em direção aos cavalos. Nós não ficamos pra ver no que deu, fomos saindo junto com outros. Alguma correria, desinformação, aquela ameaça de superlotação, a expectativa de rodar com o ingresso na mão. Mas, que nada, tudo bem. Demos a volta no estádio, enfrentamos uma muvuquinha honesta e entramos.

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Dentro. Bancada popular, cimentão, alambrado com arame farpado e dezenas de faixas e bandeiras. Estádio lotadíssimo, mais de 20 mil cabeças, a banda da barra tocando um pouco mais acima. Um doido sem camisa trepado numa barra de apoio, fantasiado de algo parecido com uma caveira, por certo em alusão ao cemitério do bairro de origem do Funebrero, o Chacarita Juniors. Todos em pé, todos de lado, para cabermos no degrau estreito. E do mesmo jeito: várias malandragens, várias famílias também, crianças de todas as idades – muitas!, tomando chuva -, mulheres, senhores.

Entra em campo o Chaca, papel picado, fogos, sinalizadores, bobinas. Aquele tapete branco no gramado. E mais chuva, muita chuva, e vento e frio.

Jogo tenso, pouco futebol. Um centroavante caneleiro que é ídolo, um lateral esquerdo moleque, todo o resto do time se tremia, horroroso. Torcida nervosa. Adversário bem melhor, mesmo sem três titulares, mesmo cumprindo tabela, tranquilo, tocava bola e chegava. Não se demoram a fazer um a zero na lambança do nosso 5 cabeça-de-bagre, e quase fazem o segundo, o terceiro, o quarto. Torcida nervosa pra caralho. Um velho com voz de pato se aproxima do alambrado e começa a desfilar os xingamentos mais sujos para os policiais ao lado do gramado. Ele vai passar o jogo todo ali.

Aos 30 e pouco o time continuava sem acertar nem passe de cinco metros quando, entre uma ofensa e outra do coroa, o zagueiro despacha um balão lá pra frente, o 9 raspa de cabeça, sobra com o 10 que tira do goleirinho e toma um sarrafo. Pênalti, caído do céu, muito comemorado. É o 9, claro, que bate, um pontapé no meio do gol, empatamos.

O segundo tempo é em boa parte longe dali. Mais de mil quilômetros ao sul, um time da Patagônia chamado Guillermo Brown também jogava, empatava em 0x0 e não podia ganhar. Se metem um gol e empatamos, levam o acesso para ser decidido num jogo desempate. Se ganham lá e perdemos aqui, tamo fora. Precisamos virar o jogo ou torcer para que sigam empatando. Todos com um olho no gramado, o outro no informante mais próximo, que ia passando as atualizações que tirava do aplicativo do celular (não vi rádios de pilha, senti falta).

E o jogo ficou duas vezes mais tenso. Aos 20 e pouco algum cartola mandou o funcionário ligar o sistema de irrigação do gramado. Aquela catimba descarada, pra jogar os minutos finais sabendo o resultado necessário. Ninguém estranhou muito, tudo normal. Eu e o parcero colombiano achamos muita graça, disfarçamos a vontade de gargalhar.

Aos 40 teve a clássica ‘fake new’ do gol no outro jogo, e teve muito torcedor comemorando o gol do adversário do Brown, gol que nunca existiu. Terminado o nosso jogo no empate, aquele momento de silêncio esperando a confirmação do fim da partida no sul. E de repente o estádio explode, sem maiores explicações. Chaca de volta à A. Fogos, sinalizadores, bobinas, invasão de campo. A malandragem escalando o alambrado e passando aqueles arames de campo de concentração com uma facilidade que demonstrava prática, que demonstrava cancha. No gramado, volta olímpica e mais de uma dezena de pibes em cima da baliza, que não aguentou e cedeu. Ninguém machucado, tudo é festa em San Martin.

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A saideira foi num outro bar, um de esquina, vizinho ao da abrideira, beira da estação, salão grande, um coroa sozinho atendendo de maneira admirável uns 20 clientes que resenhavam alto e cantavam a subida. Pra nós, um clássico porteño: cerveja de litro, umas fatias de pizza muzzarela requentadas e o calor da calefação pra secar o corpo da chuva. Na TV de tubo, os melhores momentos, as entrevistas, cenas da festa; na vidraçaria que dava pra rua, a festa ao vivo, as pessoas passando em comemoração. Várias malandragens, várias famílias também, muitas crianças, mulheres, senhores. Todos em preto, branco e vermelho, molhados, felizes.

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