Por Luiz Felipe de Carvalho
O marido morreu numa esquina. Poética, por conta do Caetano, mas ela nunca viu poesia nenhuma em perder o marido, com uma filha de um ano e meio pra criar. Ele tinha saído da Drogaria São Paulo, tava um pouco distraído olhando a caixinha do remédio pra refluxo que tinha comprado, e uma van dos Correios levou tudo, ele, os remédios e a plaquinha com o nome das duas avenidas famosas, Ipiranga de um lado, São João do outro. Nunca mais que ela tinha passado por lá.
Naquela manhã, dez anos depois, ela não pensava no marido. Luzia, aliás, montou um esquema psicológico intenso para não pensar no marido nunca. Sem nenhuma ajuda profissional, claro, porque um profissional da cabeça provavelmente não aconselharia o esquecimento, e sim o luto completo. Mas, sem mais ninguém no mundo além da pequena Marinês, ela não podia fraquejar. E pensar no marido morto equivalia a fraquejar. Então chorou um pouco, sofreu, ali logo depois do acontecido, e depois nada. Nunca mais verteu lágrima. Ele era um homem bom, correto, inofensivo. Não muito apaixonante, um tanto apagado. Ela o amava de um jeito que quase não era amor, enquanto durou. Depois, nada. Se proibiu de sentir falta.
Entrava no consultório às oito, e como em todas as manhãs, nesta terça-feira de um maio mais frio do que o costume, estava acordando Marinês às seis e dez. Eu citei consultório, mas não expliquei o que fazia Luzia. Era secretária bilíngue de um médico porreta. Bilíngue porque falava árabe libanês, e o tal médico porreta, Dr. Sofrim, era queridíssimo da comunidade libanesa de São Paulo. Os pacientes mais velhinhos adoravam poder falar na língua pátria com a secretária do médico. Ganhava bem, ou assim assim. Quando ao acordamento de Marinês, era mais maneira de dizer, já que a menina, já meio que adolescendo, custava a acordar, ficava em estupor matinal, ia dormindo no banco de trás do carro, até ser deixada na escola.
Depois do café meio corrido, com Marinês ingerindo alimentos e líquidos quase que goela abaixo, Luzia fechou a casa, e abriu a garagem com o controle remoto. Marinês já se enfiou no banco de trás, estirando-se como podia, já corpulenta como estava. Luzia deu ré no carro e, um pouco distraída e irritada com a noite mal dormida, deu uma leve raspada na lateral do veículo enquanto passava pela apertada distância entre a caixa de correio e um poste de energia. Apertou o botão para fechar a garagem, e resolveu descer pra ver o tamanho do estrago. Era zero, não tinha acontecido nada. Quando voltava ao carro, Luzia viu se aproximar uma van dos Correios, que embicou perpendicularmente em relação ao carro dela. De dentro saiu um carteiro, que não fez nenhuma conta da presença de Luzia, e simplesmente enfiou o que tinha que enfiar na caixinha. Luzia não pensou muito naquilo, não esperava simpatia de ninguém. Também não tinha tempo de ver o que era, mas nada de importante é colocado na caixa de correio, então ela se foi.
Não é bom criar expectativas, esta estória não é de suspense. O que o carteiro deixou na caixinha foi uma conta de água, que já estava em débito automático, e uma carta de feliz aniversário enviada pelo dentista de Luzia – o aniversário de Luzia tinha sido há dois dias. Nada disso importava, primeiro porque não importava mesmo, e segundo porque não era de conhecimento de Luzia, que seguia com seu carro em direção à escola de Marinês. Era uma manhã comum, exceto pelo frio desnecessário, e um certo desconforto estomacal que Luzia sentia, com a comida querendo voltar pra boca. Culpa da pressa, da noite mal dormida (Luzia tinha transado na noite anterior, algo não muito comum), da irritação com a raspada do carro, da pressa de sempre. Cabe uma explicação melhor pra transa: Luzia esperou Marinês dormir e saiu com um garoto de programa, algo que fazia de tempos em tempos. Luzia permanecia fria, fria como sempre, ou como estava há dez anos, fria como aquela manhã de maio.
Luzia não era muito apaixonada por música (Luzia não era muito apaixonada por nada), mas sempre deixava um streaming de música tocando em modo aleatório, só pra fazer um barulho. Parou num semáforo da Angélica com a Baronesa de Itu, e, como quem não tem nada melhor pra fazer, prestou atenção na música, que conhecia bem, de outros tempos. Era a Elis cantando “Como nossos pais”. Até aí, Luzia nada sentia, apenas esboçou um leve esgar de reconhecimento. Até que vieram as palavras, os versos simples, que a acordaram do estupor, que não era o estupor inocente de Marinês ao acordar às seis e dez da manhã, mas um estupor auto-inflingido de total alienação. Os versos diziam “por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina”. Lembrou-se imediatamente da esquina onde o marido morrera. As lágrimas vieram tão frouxas que não exigiram nem uma careta de Luzia. Ela começou a cantar cada verso, enquanto um rio salgado, na falta de imagem melhor, lhe escorria do rosto. Antes que o semáforo abrisse, um rapaz, que estava no banco do passageiro de um carro de aplicativo, olhava aquela cena e pensava na relação tempestuosa que aquela jovem mulher deveria ter com os pais. “Tadinha”, pensou.