Entre as lágrimas e o paraíso

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Por Luiz Felipe de Carvalho

“E agora é hora do segundo lugar de hoje, “Nuvem de lágrimas”, com Fafá de Belém e Chitãozinho e Xororó!”

O locutor do rádio deve ter falado alguma coisa assim, e eu, ou meu irmão, apertamos o “Rec/Play” para gravar a música em uma fita cassete. Era assim que tínhamos que fazer para termos uma música disponível a qualquer momento, sem precisar comprar o vinil, o cassete ou o cd, em tempos em que “streaming” era apenas um verbo em inglês que a gente não conhecia. Usávamos uma fita virgem, ou fazíamos uma gambiarrinha para gravar em cima de uma fita já usada. Muitas vezes, no meio da música, vinha uma voz do além dizendo “Transamérica” ou “Rádio Cidade”, e não tinha jeito, a versão que tínhamos para ouvir ficava com aquela propagando eterna. Ou quase eterna, já que nem eu, um guardador de bagulhos contumaz, tenho mais nenhuma das fitas gravadas nos tempos de antigamente.

“E no primeiro lugar de hoje, eles, os Guns´n´Roses, com Paradise City!”

Outro locutor, ou talvez o mesmo, deve ter dito algo parecido com isso, não muito tempo depois do locutor do começo do texto ter anunciado “Nuvem de Lágrimas”. Também apertamos o “Rec/play”, e disso estou certo, porque me lembro vivamente que uma de nossas fitas gravadas do rádio tinha esta inusitada sequência: a dupla sertaneja e a cantora romântica seguidos por aquela que era a banda de rock mais perigosa do momento.

O que me leva às questões: em que momento forjamos nosso gosto musical? E teria ele algo a ver com o DNA, com tendências inatas, ou é totalmente moldado pelo meio?

Não, eu não pretendo bater o martelo em questões tão cruciais à existência humana. Pretendo tão somente exercer a arte de dar pitacos.

Eu e meu irmão éramos pré-adolescentes, com idades em torno de 11 ou 12 anos. Um momento em que todas as janelas de conhecimento estão abertas, e existe pouquíssimo espaço para preconceitos – ou ao menos deveria ser assim. Então, na cabeça de alguém que está começando a gostar de música, de uma maneira mais consciente, não existe nenhum tipo de problema em colocar hard rock logo depois de música sertaneja. Porque o que importa é o que a música provoca. Com o tempo vamos perdendo essa espontaneidade, e ficamos um pouco mais suscetíveis ao que os outros pensam sobre o que gostamos. Em uma de minhas primeiras colunas aqui na Central3, escrevi sobre minha vergonha de ouvir Roberto Carlos (dá para ler aqui https://www.central3.com.br/confissoes-sobre-o-rei/). É uma estupidez, para usar uma palavra cara ao Roberto, mas acontece muito. Ou, como diz o meme, é raro, mas acontece muito.

Creio que ser exposto aos mais variados tipo de música, quando criança/adolescente, é uma ótima maneira de fazer com que o gosto musical se forje de maneira aberta, despida de maniqueísmos que restrinjam o mundo da música a “isso é bom, isso é ruim”. Fazendo uma analogia com o paladar, dá-se o mesmo com a ideia de fazer as crianças experimentarem diversos sabores ainda pequerruchos. Assim ameniza-se o risco de elas crescerem sem gostar de cebola, espinafre ou café. É como aquela tradição de colocar cerveja na mamadeira das crianças para fazê-las se acostumar ao amargor e…opa…peraí…não existe essa tradição?

Sem problemas. Sigamos. Voltando ao raciocínio, tanto na música quanto no paladar, é claro que a mera apresentação da cebola ou do Tonico e Tinoco não vai fazer da pessoa um amante de um e de outro. Não é uma ciência exata, mas estudos feitos totalmente dentro de meu cérebro indicam que o hábito da pluraridade pode ajudar.

Em meu caso específico, devo dar os méritos de meu relativo ecletimo musical ao pai beatlemaníaco, à mãe robertiana, aos tios/tias emepezísticos, e à Rede Globo. Sim as trilhas sonoras das novelas da Globo (mais uma “vergonha” admitida: eu era uma criança/adolescente muito noveleira), com sua necessidade de ter canções diversas para se adequar aos variados momentos do enredo, traziam uma riqueza de repertório que fez muito bem ao fedelho que eu era. Por exemplo, em “Vamp”, tinha “Sympathy for the devil” (com a Claudia Ohana, não com os Stones, mas vá lá), Guilherme Arantes e Paralamas do Sucesso. Em Top Model tinha “Stairway to heaven” (provavelmente a primeira vez que ouvi Led Zeppelin), além de Djavan, Marina e Fábio Jr. Em “Perigosas peruas” tinha Red Hot Chilli Peppers, com “Give it away”, que eu achava pesadíssima.

Mesmo com o melhor tipo de formação possível, sempre ficamos com alguns pontos cegos, que depois de mais velho ficam difíceis de serem extirpados. Muitas coisas novas eu simplesmente não consigo curtir. E tudo bem também, faz parte. Gostar de tudo é o equivalente a não gostar de nada. Como quem diz que ama todo mundo, e na verdade não ama a ninguém, porque amar pressupõe uma relação especial com o objeto amado. E com essa filosofia botequiana, me despeço. Vou ali ouvir “Nuvem de lágrimas”. Ou “Paradise city”.

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