Gê, cinquenta e quatro

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Domingo, meio-dia, um bingo de Natal valendo mil contos ao primeiro que completar a fileira, o salão cheio, todos contra ele, a única opção é ganhar essa porra.

– Gê, quarenta e sete.

Se ajeitou na cadeira de plástico e comemorou por não estar tão gordo, puxou o chinelo para debaixo dos pés, voltou a dobrar a calça de agasalho na altura das canelas, sentia calor, muito calor, a camisa polo que ganhou da Linda ensopada de suor, Linda, doce Linda, como é que tudo terminou daquele jeito, meu amor, sem nem poder voltar para buscar a coleção do Hemingway? Pobre Hemingway, um fuzil de caça e…

– Gê, cinquenta e dois.

Encarou a moça que retirou a bolinha da gaiola. Ela o faz antes de esticar o braço e escancarar o número frente ao câmera que reproduz o sorteio num telão gigantesco, CINQUENTA E DOIS – 52 estourando até olhos míopes, e não é que a garota é a cara da Linda mais jovem? Me permita roubar sua inspiração, Virgínia, mas tivesse tempo para uma carta escreveria que o que quero dizer é que é a você que devo toda a minha felicidade, Linda.

– Gê, quarenta e nove.

Pediu uma água e torceu, calado, para vir com a dose letal do Quiroga, mas ao firmar as mãos para segurar o copo de plástico acabou molhando as pernas da senhora ao seu lado, segura essa merda de copo, seu velho bêbado!, só a Linda me chamava de velho bêbado, seu pedaço de merda!, princípio de confusão, sorteio parado, panos secos para enxugar as canelas duras da coroa.

– Gê, cinquenta.

No more games, no more bombs, meu caro Thompson? Pensou na Linda e pela primeira vez teve medo de nunca mais ter a chance de tocá-la. Começou a sentir uma movimentação estranha dentro do próprio estômago, a garganta se amarrando, as paredes da boca se contorcendo, tremia, não havia força para falar, muito menos para engolir, é como se todas as reações tivessem estacionado no tempo durante aquele segundo assustador.

– Atenção: Gê, cinquenta e quatro

Saiu correndo lá do fundo, tropeçando naqueles poucos metros entre a mesa e a frente do salão, viu o filme de sua vida passar enquanto a garota com a cara da Linda conferia a cartela cantando baixinho, quarenta e sete, cinquenta e dois, quarenta e nove, cinquenta e cinquenta e quatro, ganhou, uma salva de palmas para o senhor, qual seu nome, senhor?

Um chinelo no pé e outro perdido na corrida, a calça, ainda dobrada nas canelas, agora já deixava a bunda à mostra, a camisa polo ensopada de um suor agora frio, gelado, que pingava da testa e ia sendo registrado pelo microfone a cada gota que estourava no palco de ferro, pá, pá, pá. Desabou.

– Você está bem, senhor?

Se levantou, procurou pelo prêmio, eu só quero a mala com o dinheiro!, eu só quero poder ver a mala com o dinheiro!, a garota com a cara da Linda aponta para o canto do palco, ele cai novamente, as pernas já não respondem mais, você está bem, senhor?, cala a boca, Linda!, Linda, quem é Linda, senhor?, cala a boca!

Rastejou, alcançou a mochila de pano inteiramente preta com um laço vermelho que amarra as duas alças e uma pequena placa dourada fixada, BINGO VITÓRIA, tentou abri-la sem sucesso, como abre?, como abre a mala?, quero ver o dinheiro!, quero ver o dinheiro!

A garota o ajuda a abrir, obrigado, Linda!, quem é Linda, senhor?, vá tomar no cu, Linda, porra!

De bruços, enfiou a cabeça dentro da mala, os poucos cabelos caídos para fora, a testa já grudada num maço de notas de cem, os óculos apertando os olhos contra mais bolos de dinheiro, a boca beijando uma cédula acertando em cheio o meio da careca do Benjamin Franklin.

Puxou o zíper com a mão direita e esticou as pernas pela última vez.

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