Sapucaí: Um labirinto em linha reta

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Por Leandro Iamin

Tão logo me acomodei no concreto do Setor 5 da Marquês de Sapucaí, um senhor ao meu lado espreguiçado no degrau provocou os seus. “Não me admira nada que derrubem a Tuiuti pelo que fez ontem”. Olhei em concordância. A escola pequenina deu as cartas na noite anterior e a principal notícia nas redes monotemáticas sociais, ao longo do dia seguinte, foi a pouca ênfase da TV oficial às críticas de seu desfile – quanto vale o orgulho de merecer ser evitado pela TV Globo? A Tuiuti cantou os 130 anos de uma abolição inacabada, e o governo brasileiro, junto de seus patinhos de amarelinha, foi representado.

A Marquês de Sapucaí é uma coisa séria. O nome original, Passarela Professor Darcy Ribeiro, homenageia seu idealizador, um educador que também goza da tal honraria global descrita acima e que, como secretário de Educação da cidade, junto de Brizola e Niemeyer, outros dois “malditos”, planejou o funcionamento, entre outras coisas, de uma escola no local e colocou as arquibancadas, o arco e a alma daquele lugar a serviço da maior manifestação artística do mundo.

Maior, sim. Uma ópera, aquela criada na Itália centenas de anos atrás, pode ser quase tão completa quanto uma noite na Sapucaí. Quase. O próprio nome, “ópera”, tem algo a ver com a pluralidade e a mistura de modalidades artísticas, canto e teatro, música e dramatização, uma história contada com fantasia e ritmo. O carnaval é sua herdeira mais bela, e não compreendo como não é encarado desta maneira por nós mesmos – ou até entendo, mas não quero citar a TV oficial em três parágrafos seguidos.

Uma história a ser contada em movimento, ao longo de 700 metros, trazendo denso material visual, sonoro, a união do objetivo com o abstrato a serviço de uma narrativa estética com começo, meio, fim, tudo documentado antes de pisar na avenida, ensaiado, calculado. Na ponta do paradoxo, o fato de seus agentes centrais, aqueles fantasiados na avenida, geralmente quase nada entenderem do que eles mesmos estão ajudando a contar – e estariam lá de qualquer forma. Na outra ponta do fio da meada, uma elaboração de meses na escolha de cada elemento, a luz, o material, isopor, cola, cetim, soldas, tudo que der. No meio disso, uma bateria com dúzias, dúzias e dúzias de pessoas fazendo parecer fácil – já tentou tocar em uma bateria de escola de samba?

Aí começam as subversões. Em qual debate sobre a liberdade da mulher, por exemplo, se encaixam as fantasias sumárias de tantas de suas musas, em um país moralista que finge não ser, machista com orgulho de ser, mas incapaz, na avenida, de tirar da mulher o posto simbólico de Rainha e o sentimento real de poder? Raciocínio parecido cabe para cada anônimo suburbano debaixo da fantasia, para o gari que dança com a vassoura e arranca clique do camarote e o rapaz que empurra o carro alegórico só por amor – e não me falem em amor, futebolistas, que amor é isso.

O amor dessa gente pela sua escola goleia o vivido por um time de futebol. Primeiro, porque sentem um amor limpo, sem os elementos turvos do ódio e da rejeição ao “rival”. Depois porque, comparando Mangueira com Flamengo, o primeiro “joga” só uma vez por ano, e está tudo concentrado naquele momento, não diluído pelas semanas do ano, e isso pesa. Por fim, porque é mais vivo, ué. Artístico, entrega mais sonho, mais voz, enternece, amolece. Nos melhores casos, lançam um grito de sonho ou um coro de protesto.

Campeão e vice de 2018 sangraram a avenida. Este sonho chamado Paraíso do Tuiuti começou um ano atrás com um atropelamento (que deveria lhe causar rebaixamento não fosse uma manobra política) em sua volta à elite carnavalesca e terminou (terminou?) ontem, com o vice-campeonato após um desfile chocante, sem margem para meio-entendimento em que destacaram-se, no fim, um Michel Temer Vampiro e uns Tontos Batendo Panelas. Tudo envelopado pelos lados emocional (samba mocionante) e técnico (o desfile em si) em dia. O amigo ao meu lado na Sapucaí, ainda bem, errou na sua previsão, e a Tuiuti, com seu desfile inflexível, reposicionou o olhar para o campeão.

A Beija-Flor fez, para mim, o maior samba dos últimos dez anos, empatado, se tanto, com o da Vila Isabel de 2013. Em comparação ao da Tuiuti, no entanto, sua crítica parece leve – e não é. O elástico foi esticado, o sarrafo subiu, o contraste provocou a comparação, mas há também um elemento que contradiz a própria linguagem carnavalesca, que é também a artística: o direito a caminhar nas entrelinhas. Sem tolerância à generalidade não haveria desfile coerente. A literalidade das teses de mestrado não é demanda da arte, e esta tem liberdade para deixar fios soltos e sujeitos ocultos – e nem me parece o caso.

Como também seria severo demais com escolas que contam na avenida a vida de um ator, a história dos molhos de tomate ou algum tema como “o amanhã” ou “o medo”. Também são importantes.

Sou da turma dos que lêem e ouvem o samba da Beija-Flor e não encontram a complacência denunciada pelos amigos e amigas. Está lá a silhueta do personagem central e dos que o cercam. Desfile por desfile e sambas à parte, ambos, Beija-Flor e Tuiuti, misturam pautas e criam conexões discutíveis entre elas, mas um desfile tem disso também: não é uma aula científica, e sim uma história com nuances de primo mineiro que divaga muito numa prosa. No caderno da campeã, o enredo tinha o nome “Monstro é aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados da pátria que os pariu”. Tanto a figura do “monstro” é diversa e fugidia quanto a ideia de “saber amar” escapa das mãos. Então qual é o julgamento?

O meu fica por conta do arrepio sentido quando, nas escadarias, indo embora da Sapucaí, desfile terminando lá no fundo, notei absolutamente todos descendo os degraus e cantando baixinho o samba ouvido agora ao longe. Uma reunião de sussurros que ganhava imediatamente as ruas e deveria chegar até o Maracanã num domingo de Fla-Flu ou numa escola de Darcy Ribeiro já nesta quinta-feira. Um canto de assimilação, uma reza conectada ao que se vive, como se uma reza fosse. Que a Tuiuti e sua bomba atômica à prova de hipocrisia tenha enrijecido mais as mandíbulas de quem cantou junto do que a Beija-Flor, era o esperado. Não a torna antagônica. São aliadas. Uma mais explícita, a outra mais sutil, uma mais agastadiça, outra mais poética. Ambas legítimas na vida e na avenida.

São, campeã e vice, donas de desfiles com mensagens necessárias e complementares na ópera brasileira, caótica, confusa e improvável, um labirinto em linha reta de onde, mesmo com toda atenção, não se capta toda a mensagem, na qual pisamos dispostos a absorver todo o conhecimento ofertado mas logo nos deixamos levar por um rebolado, um acabamento, uma paradinha, um truque, e pomos tudo a perder, e de onde nascem, ou deveriam nascer, muitos outros gritos de resistência, orgulho, afirmação, picardia. Os desfiles consagram a possibilidade livre da ironia, são o paraíso narrativo do entredito e guardam dentro dos bolsos de suas fantasias muito mais que dinheiro e identidade: lá está o estilo de vida de um país que dorme tarde por opção, acorda cedo por obrigação e, tão criança, sente preguiça de ler à tarde os enunciados da lição-de-casa.

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