Sobre o oposto da verdade

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Por Luiz Felipe de Carvalho

Pensando em qual seria o tema de minha coluna de abril, achei que a data “comemorativa” que abre o mês seria uma excelente inspiração, além de ser um assunto bastante recorrente em nosso país hoje em dia. Não que o Brasil tenha lá uma História imaculada e pura, mas a impressão que temos é que, atualmente, todo dia é o Dia da Mentira.

Embora algumas mentiras sejam danosas e potencialmente assassinas, de maneira geral eu advogo a ideia de que, sem nenhuma mentira de qualquer espécie, o mundo já teria perecido – ou ao menos a humanidade. Espero que esta tese nunca seja comprovada empiricamente, mas imaginar todas as pessoas falando cem por cento da verdade durante todo o tempo me parece uma perspectiva atroz (vide o estrago que o personagem de Jim Carrey faz sozinho, no filme “O mentiroso”, em que fica incapacitado de mentir). Sim, mentiras podem ser inofensivas, podem ser benéficas, podem evitar danos maiores, podem até ser engraçadas. Isso dito, é claro que, na maioria das canções que escolhi, as mentiras são danosas, seja quando se trata de mentiras institucionais, seja quando se trata de mentiras de amor, ou de outros tipos.

A Central3 tem um podcast, chamado Travessia, que a cada edição traz músicas sobre um determinado tema. É difícil encontrar um assunto que ainda não tenha sido tratado por lá, em seus mais de cem episódios. Mas fucei, fucei, e não achei nenhum programa falando sobre a mentira. Então fica aqui o convite aos colegas Fernando Vives e Caio Quero de dedicarem uma edição do Travessia a este tema tão controverso. Certamente, além das dez canções aqui abaixo, ainda há muitas outras dentro da música brasileira.

1 – Pega Na Mentira – Artista: Bozo – Composição: Roberto Carlos/Erasmo Carlos

Ah, saudades de quando o palhaço Bozo só contava mentiras inofensivas, como “Zico tá no Vasco” ou “o Brasil não gosta de novela”. Esta canção foi escrita por Roberto e Erasmo, e este último a gravou em seu álbum “Mulher”, de 1981. A versão do Bozo é do ano seguinte, e é bem divertida. Quem foi criança nos anos 1980 certamente vai se lembrar. Eu ainda tenho aqui o LP do palhaço, que na capa traz uma foto dele em uma roda gigante no finado Playcenter, parque de diversões de São Paulo. Os versos trazem mentiras diversas, e alguns são bem políticos, como “vi Papai Noel numa favela” ou “acabou-se a inflação”.

2 – Samba do Grande Amor – Artista: Chico Buarque – Composição: Chico Buarque

Este samba faz parte da trilha sonora do filme “Para viver um grande amor”, de 1983, filme co-escrito por Chico Buarque junto com o diretor Miguel Faria Jr., baseado na peça “Pobre menina rica”, de Vinícius de Moraes e Carlos Lyra. Os protagonistas do filme são Patrícia Pillar e…Djavan! A letra fala sobre alguém muito machucado pelas mentiras de amor, e que por conta disso desistiu de amar, e chega a “mudar de calçada quando aparece uma flor”. Os versos tem a genialidade típica de Chico, e o arranjo tem flauta de Danilo Caymmi e bateria de Wilson das Neves, entre outras maravilhas.

3- Aos Pés da Cruz – Artista: Orlando Silva – Composição: Zé da Zilda/Marino Pinto

“Pra mim você mentiu/ Pra Deus você pecou”. Foi cantarolando estes versos que minha mãe me respondeu, quando perguntei se ela se recordava de alguma música com o tema “mentira”. De fato, o que move esta música é a promessa desfeita de uma mulher, que supostamente quebrou os votos feitos no casamento. Aqui a religiosidade entra na dança, e o narrador acusa a mulher não só de ter mentido, o que seria um problema menor, mas de ter pecado, ao “mentir” para Deus. Não vou aqui discutir os dogmas da Igreja Católica, mas é certo afirmar que este um clássico, gravado por Orlando Silva em 1942, e regravado, entre outros, por João Gilberto, em seu primeiro álbum, “Chega de saudade”, em 1959.

4 – Pra quê mentir? – Artista: Paulinho da Viola – Composição: Noel Rosa/Vadico

Paulinho da Viola cantando Noel Rosa: é difícil ficar melhor do que isso. Aliás, é bom remendar minha própria frase: cantando Vadico e Noel Rosa. Este samba é a última parceria entre Noel e um de seus principais parceiros. A faixa abre o lado B do disco “Memórias Cantando”, que Paulinho lançou em 1976. A letra é um primor, e apenas atesta que Noel é um dos maiores letristas da história da música (Vadico fazia as melodias, de maneira geral, na parceria, embora nesta faixa especificamente até a melodia seja em boa parte de Noel). Aqui o narrador questiona à mulher amada o porquê de tanta mentira, já que ele já sabe que ela não gosta dele. Dor de cotovelo em seu grau máximo.

5 – Mel na Boca – Artista: Almir Guineto – Composição: David Corrêa

Meu primeiro contato com esta música foi nas rodas de violão com meu tio. Seu refrão contagiante é um sucesso garantido em qualquer festa. Não é de se estranhar, já que David Corrêa, o compositor, é um mestre dos sambas-enredo, sendo até hoje o maior vencedor de disputas de samba-enredo da Portela (sete vezes), além de ter composto para outras escolas. É co-autor, por exemplo, de “Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu”, da Mangueira, conhecida até por quem não liga pra Carnaval. A letra fala de alguém que suportou muitas mentiras, mas ao contrário das faixas anteriores, aqui o tom é de esperança, de um raio de luz que do “sol voltará a brilhar”. Acho lindos os versos “Pode parar com essa ideia de representação/ Os bastidores se fecharam pra desilusão”. Almir Guineto lançou a música em seu disco de 1986, que também tinha os sucessos “Caxambu” e “Conselho”. Tristemente, David Corrêa faleceu no ano passado, vítima da Covid-19.

6 – Codinome Beija-Flor – Artista: Cazuza – Composição: Cazuza/Arias/Ezequiel Neves

Embora esta canção comece com o verso “pra que mentir, fingir que perdoou”, não é isso que faz dela uma canção sobre a mentira. Na verdade a mentira desta letra já está no título. Trata-se de um amor que teve que ficar escondido atrás de mentiras, porque, por algum motivo, ninguém podia saber dele. Afinal, “eu protegi o teu nome por amor/em um codinome beija-flor”. Cazuza dá aqui o testemunho de que a mentira pode, sim, ter bons propósitos. A faixa saiu no primeiro disco solo de Cazuza, “Exagerado”, de 1985, abrindo o lado B. E ela também serve para exemplificar um dos motivos de Cazuza ter saído do Barão Vermelho: uma música com esta jamais teria sido gravada pelo Barão. Especialmente com este arranjo que começa só com piano, depois tem companhia de cordas e efeitos de teclado.

7 – Eu não sei mentir direito – Artista: O Rappa – Composição: Marcelo Yuka/O Rappa

Apesar de esta letra ser de Marcelo Yuka, então baterista da banda, o encarte traz a informação de que é baseada no baixista Lauro Farias, que provavelmente é a tal pessoa que não sabe mentir direito sobre a qual a letra se refere. A música traz uma questão interessante: no país da malandragem e do “jeitinho”, como é possível se dar bem sem saber mentir? Segundo a letra, o personagem principal só chegou inteiro até aqui porque é como um “avesso esperto da malandragem”. Outra relação interessante que a letra faz é entre o fato de não saber mentir e não saber jogar futebol, um esporte que tem a finta, ou seja, a mentira, como uma de suas bases.

8 – Qual mentira vou acreditar – Artista: Racionais MC´s – Composição: Mano Brown/Edi Rock

De maneira geral, o disco “Sobrevivendo no Inferno”, lançado pelos Racionais MC´s em 1997, é bastante sombrio. Dentro deste clima, talvez “Qual mentira vou acreditar” se destaque como uma das faixas mais “leves” do disco, em comparação às outras. A letra, quilométrica, narra uma noitada, e as ciladas que ela guarda. São basicamente três mentiras que o protagonista, ou algum conhecido, aguenta durante a noite: primeiro do policial que o enquadra sem motivo, e mete o já batido papo de que não é racista, porque “o primo do cunhado do meu genro é mestiço, racismo não existe”; depois vem a mina com quem um parceiro dele sai, que parecia gente boa, mas se mostra uma “vaca nazista”; e por fim ele fala dos “irmãos” que usam uma igreja pentecostal como fachada para venda de drogas. Nesse universo retratado pelos Racionais, não existe leveza total.

9 – Menti pra você, mas foi sem querer – Artista: Pato Fu – Composição: Rubinho Troll

Como dei crédito para minha mãe, também devo dar crédito ao meu irmão, que me lembrou dessa música. Rubinho Troll, o compositor, foi parceiro de John Ulhoa, do Pato Fu, em uma banda chamada Sexo Explícito, no começo dos anos 1980. Morando na Inglaterra, Rubinho continuou em contato com o amigo, e de vez em quando mandava as composições que fazia. Esta é uma delas, lançado pela banda no disco “Ruído Rosa”, de 2001, e que foi tema da novela “Coração de Estudante”, da Rede Globo. A letra fala sobre alguém com uma espécie de compulsão pela mentira, alguém que até tenta, mas simplesmente não consegue parar de mentir. É uma faixa divertida, que ganha muito pelo choque de uma voz tão suave como a de Fernanda Takai confessar ser tão afeita a lorotas mil.

10 – De mentira – Artista: Zeca Baleiro – Composição: Zeca Baleiro

A faixa mais recente desta seleção, lançada em 2016, fala sobre o tipo de mentira mais presente nos tempos modernos: aquela em que a pessoa aparenta ser algo que na verdade não é. É um tipo de mentira que sempre esteve por aí, claro, mas que as redes sociais elevaram a um grau patológico. Repetindo várias vezes seu refrão em forma de bronca, e com uma letra extensa, que cita Fernando Pessoa ao final, Zeca Baleiro dá um toque para quem vive uma vida “instagramável” e vazia. No final entram algumas cordas, e até um instrumento que eu, um ávido leitor dos créditos nos encartes, nunca tinha ouvido falar, chamado corne inglês, que tem um som parecido com um oboé.

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