O vitimismo assustado de Adãos e Evas

A heterossexualidade cisgênera deveria vir embalada em plástico bolha. O temor que ela se quebre e seja descartada é imenso. Juram que é a vontade da natureza, a predestinação imposta aos humanos pelo divino, que os cromossomos XX e XY são únicos, incontestáveis e determinantes. Mas juram que se uma drag queen estrelar um comercial de refrigerante a influência social será devastadora, no dia seguinte milhares de meninos começarão a se maquiar e ensaiar uma coreografia bate-cabelo para a festa de encerramento do ano letivo na escola.

Assisti a um vídeo onde uma pessoa se diz sem gênero. Triz, rapper paulista. Ou seja, não se identifica nem como homem, nem como mulher. Sem qualquer vontade de seguir as regras ditadas pelo feminino nem pelo masculino. Triz não se vê lá nem cá. Usa roupas neutras, cabelo neutro. Aparência neutra.

Estranho? Nessa esteira de moldes regulados onde fomos encaixados, onde desde criança seguimos os padrões e nos acostumamos à sua “normalidade”, sim, de início, achamos estranho. Nós coubemos. Ela não. Várias pessoas não. Por que odiá-las? Por que maltratá-las? Que medo é esse, Adãos e Evas?

A quem elas ameaçam? A quem ferem? Por que ferem? Pela lógica conservadora do XX e XY invencíveis, tais pessoas deveriam, no máximo, ser ignoradas. Afinal, em nada prejudicariam o andar da carruagem hétero cis.

Mas os comentários que li eram moedores de carne. A necessidade de agredir alguém por este alguém assumir-se como de uma sexualidade diferente é a lua cheia para o lobisomem. Transtorna. Tratam como um crime com sentença de apedrejamento.

Como se a pessoa fosse uma ditadora interplanetária com o poder mágico-físico-quântico-químico-telepático de conquistar a Terra, tornar sete bilhões de habitantes em seres iguais a ela. Que precisasse de reação imediata para ser calada, acorrentada, escondida, atirada na masmorra. Combatida pelos Vingadores para ser vencida, de tão poderosa influência que tem.

Cadê a certeza de que a natureza macho e fêmea é imbatível? Acaba só porque alguém com pênis diz que curte saia e maquiagem e por alguém com vagina querer barba e usar sapatênis?

Calma, Adãos e Evas. Não acaba. Héteros cisgêneros existem. Fazem parte da natureza. Só que grande parte não entendeu que o mundo não lhes é exclusivo. Não entendeu que vitimismo é justamente ser a hegemonia e se considerar ameaçado pela minoria. Minoria que nada mais pede que existir como quer existir, como sente que deve existir.

Vitimista não é quem, simplesmente, relata quem é, pede respeito e desafia a ordem vigente, sabendo que será insultado, talvez até assassinado. O nome é coragem. Vitimista é quem se incomoda e se enraivece por alguém traçar um relato de si e mostrar-se fora do molde.

Qual o motivo de atribuírem a tal pessoa uma infecção de alto contágio? Qual poder atribuem a ela? Que fúria contrária é essa? Por que ela surge? Que medo é esse?

Adãos e Evas exalam uma ira típica do fanatismo religioso. Como se um soldado do Estado Islâmico estivesse preso lá no porão dos sentimentos e, toda vez que ouvisse “Tem LGBT falando”, arrombasse a porta já com a corda na mão para amarrar e jogar do alto do prédio.

Bastou uma mulher trans interpretar Cristo na peça Jesus, Rainha do Céu para que a hidrofobia se espalhasse. Se Jesus não estiver no modelo imagem de altar, de presépio, é guerra declarada. A peça traz a reflexão de como Jesus teria de ser hoje para ser tão revolucionário como foi. Ele o seria se viesse com o mesmo discurso de dois mil anos atrás contra a hipocrisia dos religiosos, perdoando pecados, cuidando dos pobres, repartindo o pão? Não deixaria de ser. Mas seria bem mais se questionasse também as sexualidades emolduradas.

Para testar os cristãos, seu amor e acolhimento, um corpo e uma mente trans seriam bem adequados. Jesus teria que chocar, mexer com as convicções, com os preconceitos, despertar ódio e a sensação de perigo como o fez pela Judeia. Só assim saberia se realmente a mensagem de amar ao próximo e não jogar pedras já seria bem recebida e por quem seria. Saberia se sofreria de novo ataques, ojeriza, espancamentos e morte.

Jesus saberia quem são os soberbos que usam os outros para detonar e se autoendeusar. Os fiscais da cama e do guarda-roupa alheios, que chamam de terapia a volta para o armário da cura gay, e de ideologia de gênero a discussão de sexualidades e opressões na escola. Se o gay vira hétero é cura, se o hétero vira gay é doutrinação, dizem Adãos e Evas (quando nem é uma coisa nem outra. É entrada no armário e saída do armário, respectivamente).

Jesus teria seu martírio reeditado pelos inseguros e assustados vitimistas Adãos e Evas, que tremem e babam ao se deparar com Pabllo Vittar, Triz, Liniker ou anônimas parecidas e insubordinadas. Adãos e Evas que sabem que o antigo poder de ofensa não é mais o mesmo, não tem mais tanta aceitação, nem está mais dentro da normalidade.

Daí, se avexam em incinerar as bruxas, nem que seja em comentários de internet. Talvez, como disse Judith Butler, as queimem apavorados pelo poder que elas têm.

 

*Miguel Rios é jornalista, recifense, militante LGBT e filho de Oxalá.

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Aquele Zé em seu armário fumê

Zé é homossexual. Os amigos até sabem, os colegas de trabalho também, a família idem. Zé sabe que sabem dele. Mas Zé, ainda assim, fala pouco de si. Fala quase nada de seus romances. Fala nada de suas noitadas. Nada, nadinha mesmo, de suas transas. Zé só ouve. Ouve seus amigos comentarem de esposas, namoradas, transas. Zé não se faz de hétero. Zé crê ter saído do armário. Não saiu.

Viver em um armário fumê é rotineiro para Zé. Acostumou-se. Considera seu habitat natural, lugar ideal. Não alcança que ele criou porque foi induzido a criar. Foi levado a crer que homossexualidade é assunto proibido. Que ele é assunto errado. Que precisa ser oculto. Que é necessário não se expor. Que ele é ser constrangedor. Que para ser aceito, ele tem que usar véu.

Jura não estar no armário esse tal de Zé. Jura que é bem resolvido. Zé se define como discreto. Zé apela para um despiste usual: atribuir seu silêncio à escolha por privacidade.

Zé se auto-oprime e nem percebe. Se percebe, se engana. Zé prefere manter tudo como está, porque como está vai indo, apesar da vontade de se abrir, apesar de ouvir piadinhas e engoli-las sem se manifestar, apesar daquela inveja de ver o retrato de um abraço de casa na mesa do colega de trabalho ao lado, apesar de ouvir em alto e bom som o convite da amiga que vai dar uma festa e lhe manda uma indireta para que leve seu amor, apesar de tantos pesares cotidianos.

Quando alguém não fala sobre sua homossexualidade ou bissexualidade e coloca tal decisão na conta da privacidade, esse alguém é como Zé. Desonesto consigo. Não há como culpar esse alguém por completo. Esses Zés ou Marias vivem em um universo que lhes diz desde criança o que são relacionamentos corretos, naturais e apresentáveis: os entre homem e mulher. E o que são relacionamentos errados, abomináveis, no mínimo suportáveis desde que secretos, comentados aos sussurros: os entre iguais.

Se fosse por privacidade, como Zé insiste, por que casais héteros divulgam tanto, postam tantas fotos, revelam-se tanto? Porque heterossexualidade flui sem barragens. Meninos e meninas héteros não precisam se envergonhar de confessar por qual ator ou atriz sentem atração. Não precisam temer em revelar a papai e mamãe sobre quem são. Não precisam averiguar o entorno para saber se podem andar de mãos dadas na rua com o primeiro amor. Não precisam preparar terreno para dar a entender no escritório sua orientação sexual. Heterossexualidade escorre.

Homossexualidade, bissexualidade e transexualidade enfrentam toda uma pista de obstáculos. De abandono a surras. De incriminação a assassinato. De meia aceitação a cobrança de discrição. De discrição a crítica severa por levantar bandeira do arco-íris.

Zé não é igual a Tião que vive sua sexualidade sem problemas, vai às festas da empresa com o namorado, já enviou os convites do casamento para o fim do ano e posta fotos na boite cercado de drags, drinks e lacres. Duvido que Tião não tenha passado por opressões semelhantes a de Zé. Mas a vida não é exatamente idêntica para todo mundo, nem todo mundo é igual em personalidade e capacidade de superação. E Tião pode ter sido um Zé ou, quem sabe, um Zé em um armário de chumbo. Quem nunca debaixo desse rolo heterocompressor?

Zé não é o problema. Zé a vítima. Zé é o que o ator hollywoodiano Dan Amboyer foi. “Sendo um ator jovem nessa indústria, sempre fui advertido para me manter quieto. Foi difícil viver com isso. Mas nunca interpretei um personagem gay e eu não queria ficar limitado por uma percepção estranha.” Dan saiu do seu armário fumê para se casar com Erick P. Berger diante de amigos e imprensa. Tornou-se insuportável. Quebrou o vidro e foi respirar oxigênio.

“Existem outros atores por aí que apenas mantém isso como um aspecto não falado de suas vidas e nunca discutem em público”, completou Dan. Adivinha por quê? Medo. Falta-lhes coragem. No entanto, a covardia não é gratuita. É adestrada. Até um leão teme o chicote do domador. Sabe que fere, sabe que tem que obedecer.

Se topar com um Zé, o que é bem fácil, ajude-o. Vá com calma, dê coragem em conta-gotas, ganhe a confiança dele, incentive-o. Mas não seja a inquisição. Seja a revolução.

 

**Miguel Rios é jornalista, recifense, militante LGBT e filho de Oxalá

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Orgulho LGBT não é frescura. É imprescindível

*Por Miguel Rios

Puxe da memória. Que pessoa hétero cisgênera você teve notícia de que foi expulsa pela família de casa por sua sexualidade? Que garoto hétero teve medo de chegar para o pai e contar que gosta da garota vizinha? Que menina se sentiu amedrontada por colecionar fotos de Justin Bieber? Que cara cisgênero, jeito de macho, sofreu bullying na escola por seu jeito másculo de ser? Que casal homem e mulher cis foi convidado a se retirar de um bar por se beijar? Lembrou de algum caso?

Daí o orgulho hétero cis ser desnecessário. Nunca foi considerado ilegal. Nunca se é humilhado ou espancado por essa condição. Não traz nenhuma dificuldade social.

Não precisa resolver se assume ou não para chefe e colegas de trabalho. Não precisa decidir se anda ou não de mãos dadas pela rua com quem ama. Hétero cis não sai do armário. Não há armário. Desconhece o que seja. Nem pensam sobre. Isso é privilégio.

Orgulhar-se de ser privilegiado, de ser o padrão aceitável? O considerado normal? Pra quê orgulho se desde sempre ninguém os força a se sentirem envergonhados? Quem os recrimina por exibirem sua sexualidade aprovada? Já para LGBTs a pegada é outra. Justamente o contrário. Questionam-se se podem amar ao ar livre, se terão condições de serem quem são no emprego, se serão aceitos. Héteros cis já são aceitos de pronto. Quando se nasce os planos familiares são para um bebê será hétero cis.

Gays, lésbicas, bissexuais e pessoas transgêneras brigam por aceitação. E isso já é nos agredir. Daí há motivo para incentivar o orgulho na comunidade LGBT. Desde cedo lhes é imposto que se sintam erro, anomalia, vergonha e pecado.

“LGBTs não reproduzem.” Mais de 7 bilhões de pessoas no mundo e ainda desconfiam da capacidade hétero de dar conta da necessidade reprodutiva. Sem falar que há reprodução in vitro, sendo a maneira tradicional desnecessária. Sem falar que bissexuais gostam de ambos os gêneros, que há gays e lésbicas que não se sentem impedidos de transar esporadicamente com pessoas do gênero oposto, que há casais formados por homem trans e mulher trans que já geraram filhas e filhos .

“A Bíblia condena.” Problema da Bíblia. Ninguém é obrigado a segui-la. A teocracia é um dos males da humanidade. Aniquila a democracia.

“Não é natural.” Práticas sexuais entre animais de mesmo gênero são observadas na natureza faz décadas. Basta pesquisar. E se formos falar nesse natural, é comum em animais que na disputa por ser o macho alfa, o vencedor mate toda a prole do derrotado e mantenha relações com as fêmeas para gerar uma nova ninhada com seus genes. Bastam algumas horas de Animal Planet, NatGeo ou Discovery Channel para confirmar. Alguém disposto a viver essa emoção natural?

“Não sou obrigado a aceitar ver dois homens se beijando.” Já experimentou olhar para o outro lado?

“Como vou explicar aos meus filhos.” Filho, há casos onde homens gostam de homens, namoram e se casam e mulheres gostam de mulheres, namoram e se casam. Há casos onde uma pessoa nasce com piu-piu, mas se sente menina e vai viver como menina e uma pessoa nasce com pepeca, mas se sente como menino e também vive como menino. Ninguém precisa imitar se não se sentir igual. FIM.

“Não sou obrigado a aceitar tal coisa à luz do dia.” Se não aceitarem você, vai se esconder?

A sociedade reacionária acredita deter todo o conhecimento sem nem se dar o trabalho de se informar sobre. Um pensamento formado pelo conhecimento vago ou pelo conhecimento zero. Se o senso comum diz que é assim, então é. Para quê se esforçar em pesquisar?

E o sofrimento causado pouco importa. “É triste ser retratado como uma pessoa solitária. Ele teve uma vida feliz e plena. Formamos uma família”. A declaração de Jaime, companheiro por 30 anos de Kid Vinil, emocionou por retratar uma felicidade abafada, intramuros, que não podia dizer seu nome. Felicidade pela metade. No sigilo. Um sigilo incomum entre casais héteros. Porque não correm o risco de serem agredidos, insultados e rejeitados. Porque não foram condicionados a se envergonharem da relação e não se acostumaram a ter de ocultá-la. Nem se preocupam. Haja fotos de noivados, casamentos e filhos pelas redes sociais. Haja anúncios de relacionamento sério. Haja beijos em público. Já entre LGBTs se há o cuidado de olhar para os lados e investigar os arredores.

A conjuntura de vida de Kid e Jaime os obrigou a manter o amor no armário. Gays coroas, que viveram em uma época bem mais raivosa, onde não havia paradas, nem bandeirinhas no Facebook, nem casamento legalizado, nem parte da sociedade a favor. A LGBTfobia era, de certa forma, legitimada. Até dentro da comunidade havia o sentimento de se sentir em desajuste e em desacordo com o normal. A LGBTfobia também carrega esse viés violento. Amedrontar e convencer de que está cometendo um erro, mesmo você certo de que não está. É contraditório. Mas é assim.

Kid e Jaime usufruíram de um amor paralisado pelo medo. De desagradar fãs, vizinhos, colegas de trabalho, todos que não fossem mais próximos. Não se trata apenas privacidade. É sufocamento.

O fomento do orgulho LGBT é para que essa sensação de desonra seja substituída por autoestima e amor-próprio. Para que se considere nossos afetos, desejos e sentimentos como mais algumas cores na imensa paleta que pinta a humanidade. Para que mais conquistas de direitos e espaços cheguem. Mais consciência de diversidade, inclusive para héteros cisgêneros. Não é arrogância, nem privilégio. Arrogância é se sentir orgulhoso de algo que nunca foi tido como vergonhoso. Privilégio é desfrutar publicamente de algo sem nem ter ideia do é fazê-lo em estado de alerta de que uma agressão pode ocorrer.

Você, caro hétero cis, deveria agradecer ao deus que você bota fé por não precisar de orgulho por ser quem é e não falsear um somente para implicar.

 

*Miguel Rios é jornalista, recifense, militante LGBT e filho de Oxalá.

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