Que negócio é esse?

“Futebol é negócio” virou um mantra nas discussões sobre o preço dos ingressos no Brasil, inviabilizando qualquer troca verdadeira de argumentos e pontos de vista. A frase – a primeira vista incontestável – passa a idéia de que futebol é SÓ negócio, o que não poderia estar mais errado. Durante este texto, no entanto, não a questionaremos. Na verdade vamos fazer o contrário: aceitá-la dogmaticamente e usá-la pra mostrar como nossos dirigentes são incapazes ou mal intencionados.

SE futebol fosse negócio os dirigentes logo perceberiam que é na festa e no ambiente gerados pela torcida que está grande parte do valor de seu produto. Eles seriam os primeiros a confrontarem o poder público quando esse quisesse proibir bandeiras, fogos e gritos e se prontificariam a garantir a segurança dentro de seu estabelecimento. Se futebol fosse negócio, os clubes cobrariam barato por essas entradas, garantindo uma arquibancada cheia e um verdadeiro show para os clientes VIP (cativas, camarotes, etc) e para a TV (e os direitos de transmissão seriam vendidos bem caro).

SE futebol fosse negócio o gerente que deixasse meio estádio vazio toda rodada não duraria 1 mês no cargo. Uma cadeira vazia no estádio não representa apenas o valor do ingresso não vendido, mas alguém menos envolvido com o clube, menos propenso a comprar uma camisa ou até a clicar numa notícia sobre o time: enfim, alguém que deixa de ajudar o clube a se tornar maior. Uma criança que deixa de ir ao estádio, então, pode ser o maior prejuízo que um time pode ter, pode ser a diferença – para todo o sempre – entre um simpatizante e um fanático.

SE futebol fosse negócio o desempenho esportivo do time seria de vital importância para aqueles que decidem o valor dos ingressos. Títulos dentro de campo ajudam em muito o faturamento e crescimento da instituição. Assim sendo, provavelmente o ingresso seria mais barato para que a torcida empurrasse o time rumo às taças. Seria, com certeza, uma preocupação constante, e não algo nunca mencionado.

SE futebol fosse negócio as diretorias estariam tão ou mais preocupadas com o custo do que com o faturamento da entidade. Que diretoria de negócios decide subir tanto os salários (e demais custos) sem antes garantir que terá como pagá-los? Que empresa arrisca sua solvência num projeto baseado apenas em sonho e otimismo? Se entrarmos no terreno das arenas, então, temos o pior negócio do mundo. Que empresa que costumeramente não dá lucro e já encontra-se endividada aceitar pagar R$ 1 bilhão num novo projeto? Que empresa simplesmente abandona, de uma hora pra outra, o público fiel que ela já tem para tentar atrair um novo público mais endinheirado? Que empresa investe num ativo quase do tamanho de seu PL baseando-se na esperança de vender seus naming-rights? Esse é o tipo de coisa que nos negócios é pré-requisito para que o primeiro real seja gasto.

SE futebol fosse negócio, a primeira preocupação dos clubes não seria cobrar o máximo possível a cada partida, mas sim fidelizar seu torcedor e garantir um fluxo constante e previsível de entradas. Season tickets seriam comuns e ninguém viraria as costas para um consumidor que paga menos, mas está sempre lá, para privilegiar um que paga mais na boa, mas some na ruim (pelo menos não com 100% do seu estádio).

SE futebol fosse negócio os clubes seriam mais criativos e proativos na busca de soluções para impasses como a questão dos preços dos ingressos. Normalmente dinheiro consegue comprar criatividade (alô alô, ESPM) e encontram-se maneiras não óbvias de aumentar o faturamento sem sacrificar seu principal cliente. Outro desenrolar natural disso seria cada clube ter posicionamento e ações diferentes, cada um buscando alternativas que mais fazem sentido para seu público ao invés de todo mundo fazer o que todo mundo tá fazendo.

Então, se futebol é negócio, o cara que tá tomando conta dele ou é muito burro ou muito mal intencionado. Em nenhuma das duas hipóteses ele poderia estar tomando qualquer tipo de decisão

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Máquinas do Tempo

Por Fábio Felice

Eu sempre gostei de ingresso. Desde pequeno, quando passei a frequentar estádios com meu pai, segurar aquele pedaço de plástico envolvia algo além da possibilidade de assistir a um jogo. Do tamanho de um cartão de crédito ou comprido para destacar, era uma coisa legal para se guardar na carteira, para lembrar dos jogos depois de um tempo. E poder buscar na memória os gols que rolaram, a chuva que caiu na arquibancada, o sanduíche de pernil para comemorar a vitória, o corre-corre da polícia em dia de clássico ou a fila sofrível e infindável até tê-lo em mãos. O ingresso, mais do que a prova física de um jogo, é o carimbo no PASSAPORTE cerebral do torcedor. É a ponte para as lembranças de um dia de futebol.

E ele nunca foi de um jeito só. Tinha campeonato em que vinha com os distintivos dos times estampados, lado a lado; outros que só vinha o do mandante, possivelmente porque ninguém sabia como era o escudo da Matonense; alguns econômicos, só com o logo da Federação; outros que tudo vinha escrito, não só os times mas também a cidade, a data, o horário, o estádio, o nome do juiz, o telefone de emergência, o endereço da empresa que imprimia o ingresso; e também tinha o tipo mais legal: a foto do jogador estampada. Parecia uma figurinha de álbum, um card colecionável. O problema era quando vinha a foto de um GLÁUBER da vida. Era sinal de jogo complicado. Mete 3 volantes, professor.

Se o jogador raspa a mão no gramado e faz o sinal da cruz quando entra em campo, o torcedor tem seu momento de DEVOÇÃO quando o ingresso raspa a máquina e a catraca gira por seu corpo, como se benzesse aquela figura que vai torcer pelo seu time. Amém, seu juiz, espero que seu dízimo esteja em dia.

Poucas coisas arrepiam tanto no futebol quanto passar por uma catraca de estádio, ouvir com mais nitidez o barulho da torcida, olhar um pedaço do gramado, voltar-se para aquele pedaço de plástico que lhe deu acesso a tudo isso, guardá-lo no bolso… e respirar fundo, para seguir rumo às arquibancadas. O ingresso é seu escudo. É seu atestado de torcedor. É o que te dá a possibilidade de abraçar um sujeito desconhecido na hora do gol ou de xingar a mãe de um sujeito igualmente desconhecido na hora do pênalti roubado.

Mas, infelizmente, os tempos atuais não têm sido bons para quem gosta de ingresso. No processo de hiper-modernização do futebol, o torcedor tem mais um motivo para se sentir um mero consumidor. O ingresso físico quase não existe mais, ele agora é carregado num cartão – de crédito ou de sócio-torcedor. Você encosta num leitor óptico na catraca e plinplin, pode entrar. A lembrança física do jogo? Um RECIBO, desses que sai de uma máquininha de cartão. Fino, sem graça, sem cor, sem alma, sem emblemas, sem nada, suscetível a uma poça de água. Cadê o escudo de quem vai jogar? Cadê o mergulho que ele dava num buraco na catraca, driblando a marcação das engrenagens e voltando para as mãos do torcedor, na cara do gol, com aquelas dobras para que ele não seja usado mais de uma vez? Cadê o cara que destacava uma parte e te devolvia o resto? Cadê o poder da relíquia? Como vou dizer para o meu filho que aquele pedaço mequetrefe de papel fininho é a prova de um jogo que valeu título, troféu, que foi histórico?

Vi um ingresso do Brasil x Uruguai da Copa de 1950 sendo vendido numa feira de rua em Montevideo. Além de mais conservado do que um destes “recibos” atuais, esse documento de quase 70 anos faz parte daquele jogo. Dá até para enxergar o gol do Ghiggia naquele ingresso, é só fazer um esforço.

Alguns avanços do futebol atual nos livraram de doloridos desprazeres, como o perrengue passado na fila de uma bilheteria: hoje você compra na internet, em minutos. O problema é que a única coisa que querem nos deixar é o CPF na nota. Malditos recibos. Cadê meu ingresso, cheio de alma? Quero poder viajar para o passado, no futuro.

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