O Goleiro e o Poeta

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Por Marcelo Mendez

O futebol não precisa de nada para ser algo grandioso por uma simples razão: ele é como a vida.

Não é justo. Nem sempre ganha o melhor. Não há nele nada de previsível. Tem milhares de situações e possibilidades e é disparado a maior fábrica de épicos, mitos e poetas das mais variadas e belas estirpes. Porque só ele, o futebol, é capaz de dar a devida imortalidade aos poetas. Em uma quarta-feira dessas que tinha tudo para ser comum, por exemplo, se fez História.

Naquele dia um senhor muito distinto trajando casaco, boina de feltro e munido de um guarda-chuva caminhava pela noite fria de Santiago. Tinha ele algumas ideias em mente, então saiu de sua casa, apelidada de La Chascona, para pensar sobre tudo que o cercava. Andou, andou e sem saber exatamente o porquê, foi parar na comuna vizinha de Las Condes, onde uma aglomeração de pessoas caminhava para ver um jogo de futebol. Uma delas se espantou ao vê-lo:

“Neruda! Aquele não é o Pablo Neruda?”

E ouviu a seguinte resposta:

“Você está louco ou muito bêbado! Vamos entrar que a partida já vai começar…”

Intrigado, o poeta decidiu entrar para sentir o clima da cancha. A Universidad Católica, equipe local, recebia o São Paulo pelas oitavas-de-final da Copa Sul-Americana. Nada disso o interessava muito, mas ele sem compreender o impulso que sentia decidiu entrar para ver a peleja.

A hinchada da casa vibrava, fazia festa, e o poeta pensou de imediato que uma porção de gols viria pela frente, que talvez, quem sabe, aquilo pudesse dar a ele uma emoção diferente, uma nova forma de ver o encanto. Os cruzados começaram com tudo.

Seus atacantes, bastante avançados, arrematavam ao gol do São Paulo com a fúria dos apaixonados. Era a catarse que se anunciava plenamente, linda, cheia de furor. Mas então surge aos olhos de Neruda um sujeito, um goleiro, um pretenso algoz que se colocou pronto para impedir que essa expectativa se realizasse. Ouviu de outro, a seu lado na arquibancada, que o nome dele era… Rogério Ceni.

Com a destreza de Picasso com seu pincel em mãos pronto para pintar Guernica, observava o jogo. Voava lindamente pelas bolas todas com a leveza de um Coltrane tocando I Love Supreme. Era divino ver os movimentos daquele camisa 01. Inebriado, o poeta sacou do bolso papel e lápis e escreveu um verso ali mesmo na arquibancada do Estadio San Carlos de Apoquindo:

“Meu amor, ao fechar esta porta noturna
peço-te, amor, uma viagem por um escuro recinto:  fecha os teus sonhos, entra com teu céu nos meus olhos,  estende-te no meu sangue como num largo rio.”

Como se tivesse ouvido o verso recém-criado por Pablo Neruda, Rogério Ceni seguiu fazendo defesas épicas, dantescas ao longo do jogo. Desafiava a lógica do jogo de futebol.

Se fazia herói em uma posição na qual, geralmente, estão todos os vilões, aqueles que são preparados para evitar a maior alegria do esporte; o Gol. Mas, o goleiro do São Paulo fazia isso com a elegância de um Marcel Proust em vias de escrever o seu Em Busca do Tempo Perdido.

Teve inclusive a elegância e o charme de não ser infalível, tomou por lá uns gols, mas quem há de se lembrar? De que importa isso? Rogério conseguiu mudar a dinâmica da partida. Ao invés dele, vilões foram os que marcaram três vezes contra a sua meta. Pensando assim, nosso poeta escreveu:

“Adeus, adeus, cruel claridade que foi caindo  no saco de cada dia do passado,  adeus a cada raio de relógio ou laranja,
salve, oh, sombra, intermitente companheira!”

O goleiro por muitas vezes tem apenas isso para acompanhá-lo; a penumbra. Durante muito tempo, onde ele pisava nem grama nascia. Era visto então como um sujeito que estava ali apenas para constar, para pular e ousar impedir a alegria dos torcedores, para manchar de borrão o berro impresso das palavras dos apaixonados cronistas ludopédicos. Mas, não naquela noite em Santiago…

Defendendo bolas seguidas, de forma lúdica e divina, Rogério Ceni fez o poeta entender que ali, debaixo daquelas três traves, um homem deixava de ser comum para se tornar uma lenda. Passava da condição de jogador de futebol, para um imortal. Com as cores que Fellini usou para filmar Rimini, sua cidade natal, em Amarcord, o goleiro marcava sua imagem para sempre nos corações dos amantes do futebol. Os olhos de Neruda se enchiam de água e então ele foi novamente ao seu papel e mandou:

“Não sei quem vive ou morre, quem repousa ou desperta, mas é o teu coração que distribui no meu peito os dons da aurora.”

A aurora se deu por conta daquele goleiro. Um homem cheio de todas as idiossincrasias que tornam grandiosa a existência humana. Rogério que erra, que acerta, que fica triste, que fica alegre, que ri, que chora, ficou de lado. Após o apita final, um semi deus permanecia no gramado. Então, o poeta batizou o que tinha escrito com o seguinte título:

“Somos o Casamento da Noite com o Sangue”.

Sangue puro, pleno, furioso e onírico. Com toda a honestidade e paixão de quem o derrama, de quem não se faz de rogado em jorrá-lo pelo que ama, como sempre faz Rogério Ceni. Naquela noite em Santiago, todas as odes possíveis e imagináveis foram poucas para aquilo que o goleiro acabara de fazer.

Aos pés da Cordilheira, Pablo Neruda louvou Rogério Ceni…

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