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Round 12

O Club Atlético Nueva Chicago beijou a lona no final desta temporada, após uma reação surpreendente nos últimos cinco assaltos, e se despede da elite do futebol argentino em sua sétima participação na Primera. O tradicional clube de Mataderos, zona oeste de Buenos Aires, foi fundado em 1911, apenas dois anos depois do nascimento da maior lenda do bairro: Justo Suárez.

O boxeador é considerado por muitos como o primeiro ídolo esportivo da Argentina. Seu primeiro título nacional, na categoria peso leve, foi conquistado na velha cancha do River Plate, ao ganhar por pontos de Julio Mocoroa. Em seguida, saiu vencedor em 5 lutas durante uma excursão de 4 meses aos Estados Unidos.

No retorno à Buenos Aires, foi recebido no repleto Luna Park, local onde venceu o chileno Estanislao Loyaza para deleite do então ditador José Felix Uriburu, acompanhado na primeira fileira dos futuros reis ingleses Edward VIII e George VI.

Em 1931, retornou aos EUA para tentar coroar-se rei dos pesos leves, mas antes mesmo de desafiar o detentor do cinturão Tony Canzoneri, foi nocauteado no nono round por Billy Petrolle. No ano seguinte, já de volta ao país natal, sofreu dois duros golpes fora dos rings: a separação da esposa Pilar Bravo e o fim da parceria com o seu mentor José Lectoure, proprietário do Luna.

A esta altura, a tuberculose começava a apresentar os primeiros sintomas e foi novamente derrotado, pelos punhos do compatriota Victor Peralta – medalha de prata nos Jogos Olímpicos de 1928.

Em sua última aparição entre as quatro cordas, fez uma luta arranjada no Palacio de los Deportes com o amigo Juan Pathenay, na qual saiu vencedor se despedindo em lágrimas do público, fechando seu cartel com 24 vitórias, 2 derrotas, 1 empate e 1 luta sem decisão.

Justo Suárez faleceu aos 29 anos na miséria, enquanto se tratava da enfermidade em Cosquín, província de Córdoba. Seu corpo foi enterrado no Cemitério de Chacarita, sendo acompanhado por uma multidão. No velho bairro foi homenageado posteriormente com o nome de uma rua, na qual está situado o Estádio República de Mataderos, altura do número 6900, casa do Nueva Chicago que, por sua vez, adotou para si o apelido que consagrou o vizinho mais bem sucedido: Torito de Mataderos.

Justo Suárez

No livro Final del Juego lançado em 1956 por Julio Cortázar, um dos contos (“Torito”) é dedicado à Justo Suárez, assim como tango “Muñeco al Suelo” (letra de Venancio Clauso e música de Modesto Papavero) gravado por Charlo em 1930, auge da carreira do pugilista que até hoje é reverenciado pela hinchada verdinegra. 

Outras personalidades do boxe argentino tiveram uma relação mais direta com a modalidade esportiva mais popular do país. Em 1967, quando o Racing Club conquistaria o primeiro título mundial para o futebol argentino, o peso mosca Horacio Acavallo já havia defendido por três oportunidades os cinturões da World Boxing Association (WBA) e do World Boxing Council (WBC). Racinguista fanático, Acavallo costumava usar um roupão com as cores e o distintivo da Academia.

Horacio Accavallo

El Roquiño – considerado um dos 5 maiores boxeadores do país na primeira edição dos Prêmios Konex, em 1980 – pendurou as luvas em 1968, mesmo ano em que Oscar Bonavena desafiou Joe Frazier pela segunda vez. Cria do Club Atlético Huracán, Ringo foi campeão amador na Argentina, em 1959, antes de se profissionalizar nos Estados Unidos, estreando com vitória, por nocaute técnico diante do local Lou Hicks, no mítico Madison Square Garden.

Ringo Bonavena

Foram mais 7 vitórias na sequência, em solo norte-americano, até Bonavena conhecer o gosto amargo da derrota, em decisão unânime dos jurados, para Zora Folley. No regresso à Argentina, Oscar precisou de mais 7 lutas para conquistar o título de peso-pesado. Antes de enfrentar o Smokin Joe pela primeira vez, Ringo ainda foi derrotado pelo compatriota José Giorgetti, vencendo a revanche, além de bater o canadense George Chuvalo.

Diante do campeão do New York State Athletic Comission (NYSAC), Bonavera teve um bom começo derrubando Frazier por duas vezes no 2º round. Porém, o medalhista de ouro da categoria nos Jogos Olímpicos de 1964, reagiu e ganhou a luta em decisão majoritária dos jurados, durante os 10 assaltos. Na já citada revanche, Frazier precisou de mais 15 assaltos para derrotar o argentino por decisão unânime.

Além de Fraszier, Bonavena teve o privilégio de disputar outro título, válido pela North American Boxing Federation (NABF), com outro histórico peso-pesado e medalhista olímpico. Em sua nona luta na arena mais famosa de Nova York, Ringo mediu forças com Muhammad Ali, sendo novamente derrotado ao longo dos 15 assaltos.

Oscar Bonavena se aposentou em fevereiro de 1976, ao vencer sua 58ª luta, contra Billy Joiner, na cidade de Reno, estado de Nevada, onde foi assassinado, em 22 de maio do mesmo ano, pelo segurança do bordel Mustang Ranch. Tal qual Justo Suarez, o funeral de Ringo foi acompanhado por milhares de fãs e uma rua foi batizada em sua homenagem em Nueva Pompeya, bairro vizinho de Parque Patricios, onde está localizado o Palacio Tomás Adolfo Ducó, cancha do Huracán, cuja arquibancada local (com capacidade para 19 mil pessoas) também leva o seu nome.

Tribuna

Em 2002, a prestigiosa revista norte-americana The Ring Magazine fez um levantamento dos 80 maiores lutadores ao longo das últimas oito décadas. Na 11ª colocação figura Carlos Monzón, único argentino presente no ranking e o segundo latino-americano mais bem colocado – atrás somente do panamenho Roberto Manos de Piedra Durán.

Mesmo nascendo a mais de 150 km de Santa Fé, El Escopeta era um reconhecido hincha do Colón, equipe mais popular da cidade banhada pelo Rio Paraná.

Carlos Monzón

Seu debut foi no ginásio do Club Sportivo BEN HUR em Rafaela, sudoeste da capital provincial, no qual derrotou Rafael Montenegro por Knock-Out. De fevereiro de 1963 à julho de 1970, Monzón vestiu as luvas em 100 oportunidades reunindo os cinturões de peso médio da Federación Argentina de Boxeo (FAB), da WBA e do WBC, aposentando-se em Montecarlo após vencer o colombiano Rodrigo Valdez por duas vezes em decisões unânimes.

Goles

Fora dos ringues, teve uma vida atribulada, como a maioria dos ídolos argentinos, cujo desfecho foi fatal. Na madrugada de 14 de fevereiro de 1988, o pugilista assassinou a atriz uruguaia Alicia Muñoz, sua segunda esposa, atirando-a da varanda da residência do casal, na cidade de Mar del Plata.

Carlos Monzón foi condenado a 11 anos de reclusão na Unidade Penal de Batán – sendo visitado inclusive pelo ator e boxeador Mickey Rourke. No começo de 1995, quando cumpria o regime semi-aberto morreu em um acidente de carro na Ruta Provincial Nº1.

Nesta época, outro argentino era o atual campeão dos pesos médios pela WBA. Em 12 de agosto de 1994, Jorge Fernando Castro derrubou John David Jackson ao aplicar um cruzado de esquerda no final do nono assalto. Tal qual o seu ídolo Diego Maradona, La Locomotora apelidou o seu lance mais famoso de La Mano de Diós.

Jorge Fernando Locomotora Castro

Outro xeneize que conquistou o cinturão da WBA foi o peso leve Raul Horacio Balbi. Em sua 53ª luta, Pepe derrotou por decisão majoritária o francês Julien Lorcy, em pleno Palais des Sports, na noite de 8 de outubro de 2001.

Raúl Pepe Balbi

Citando a banda Callejeros: “otro Boca – River que termina a las piñas arañando al final” o Millonario também sobe ao ringue com dois campões mundiais. Porém, o primeiro é um doble camiseta e o outro só conheceu o clube na fase adulta. Sergio Martinez nasceu em Avellaneda, mas por conta das constantes mudanças de emprego de seu pai, o metalúrgico Hugo Alberto, La Maravilla foi criada em Buenos Aires, Mar del Plata até se fixar em Quilmes.

O futebol sempre foi sua paixão, seja jogando pelo Claypole ou torcendo pelo Quilmes Atlético Club. Aos 20 anos de idade, esteve a ponto de se profissionalizar pelo Los Andes, mas acabou trocando as chuteiras pelas luvas e no final de 1997 estreou com vitória, após a desqualificação no 2º round do oponente Cristian Vivas.

No começo da sua carreira, lutou em nove oportunidades no ginásio do Club Argentino de Quilmes, clássico rival do QAC, e vestindo a camisa do Cervecero teve 100% de aproveitamento na casa do Mate.

Sergio Maravilla Martínez

Contudo, quando já havia unificado os cinturões da World Boxing Organization (WBO) e do WBC dos pesos médios, ao derrotar o estadunidense Kelly Pavlik em abril de 2010, foi homenageado no gramado do Monumental de Nuñez pela diretoria riverplatense, antes de uma partida válida pela B Nacional de 2012 diante do Gimnasia Jujuy.

Maravilla Martinez

Em sua sétima defesa dos títulos, La Maravilla teria pela frente o porto-riquenho Miguel Angel Cotto. Junito havia mudado recentemente de categoria, pois havia perdido espaço nos meio-médios ao ser batido por Manny Pacquiao e Floyd Meyweatther Jr. Mas foi o “estreante” naquela noite nova-iorquina que se deu melhor, derrotando o companheiro de “arquibancada” em decisão técnica da arbitragem no final do décimo assalto.

Cotto passou a torcer pelo River por influência do amigo Steven Álvarez, presidente da filial do clube em Porto Rico. Desde então, já foi visto diversas nas paravalanchas da Popular Sívori, sempre acompanhado de Los Borrachos del Tablón. Assim como Martínez, já foi homenageado pelo clube e nesta ocasião vestiu a camisa da banda roja com o número 14 – alusivo ao borracho na quiniela, jogo de azar muito popular na Argentina – em retribuição ao carinho dos seus amigos da barra brava.

Miguel Cotto

Recentemente, Miguel Cotto esteve presente no último Superclásico disputado em casa, no qual os visitantes ganharam por 1 a 0. Dois meses depois foi sua vez de ser derrotado pelo mexicano Saúl Álvarez, passando o cinturão do WBC.

Já no coração das arquibancadas, tanto La 12 quanto Los Borrachos del Tablón tiveram capítulos de suas disputas internas por poder escritos dentro de ginásios de boxe. No primeiro caso, Mauro Martín foi introduzido na segunda bandeja da Bombonera por Rafael Di Zeo, no final do seu reinado, pois Gabriel (irmão de Mauro) era o instrutor de Rafa à “nobre arte” no Club Leopardi, em Villa Luro.

La 12

A primeira aparição de Mauro Martín nas páginas policiais foi na noite de 22 de abril de 2006. Na ocasião, La Locomotora Castro foi nocauteado pelo colombiano José Luis Herrera no Luna Park e um hincha vestido com o agasalho do Nueva Chicago aplaudiu o vencedor. Mauro e seus sequazes logo identificaram o torcedor verdinegro; era El Gordo Óscar um dos referentes de La Banda de Matederos, que foi agredido pelo bando. A notícia da agressão correu pela zona oeste de Buenos Aires e poucas horas depois a residência da família Martín foi baleada em represália.

Quando o Boca Juniors visitou o Nueva Chicago pelo Apertura daquele ano a torcida local fez questão de lembrar da covardia dos bosteros com a seguinte canção:

Alla en Luna se vio que cagón que fuiste

Cuando fuimos a Boca, bostero no apareciste

Ya demostrate que siempre fuiste cagón

Porque no hiciste el guapo cuando llevamos el telón

Si vos sos de Boca tenes que saber

Que nos somos Chaca ya lo vas a ver

Que con Mataderos la vas a pagar

Porque a los cobardes lo vamos a matar

A partir deste episódio Mauro ganhando a confiança de Rafa, passando de aliados em meados dos anos 2000 à inimigos em 2011, quando Di Zeo saiu da prisão. Foram quase quatro anos de disputa pelo controle da barra brava com um saldo de três mortos. No começo de 2015, uma trégua foi selada e atualmente ambos dividem o comando à distância de La Boca, por conta do derecho de admisión.

Em 2007, mesmo ano em que o capo de La 12 foi preso, outra vítima fatal das internas foi contabilizada. Gonzalo Acro respondia ao grupo liderado por Adrián Rousseau à frente da barra brava do River Plate, que naquele momento se encontrava em pé de guerra com os irmãos Schlenker. Voltando para casa depois de uma sessão de treinamento, em um ginásio na Villa Urquiza, foi assassinado à mando de Alan Schlenker, sendo o primeiro caso desta natureza na mórbida lista de 309 falecidos pela violência no futebol argentino.

Gonzalo Acro

Jorge Rodrigo Barrios nasceu e foi criado em Tigre, noroeste da Capital Federal. Mas foi com o apelido de outro predador que o super-pena se tornou reconhecido internacionalmente: La Hiena. Em 9 de agosto de 2003, Barrios desafiou o brasileiro Acelino de Freitas, então detentor dos cinturões da WBA e WBO. O público da Miami Arena acompanhou uma luta muito disputada na qual o argentino derrubou Popó no oitavo e décimo-primeiro rounds. Todavia, no último assalto La Hiena não resistiu ao ferimento no supercílio esquerdo e foi derrotado por nocaute técnico.

Hiena

Naquela noite, Barrios vestiu um calção com as cores e o mascote do Club Atlético Tigre, algo corriqueiro ao longo de sua carreira. Prato cheio para os rivais do Chacarita que fizeram uma faixa com os dizeres: “Popo Freitas es de Chaca”. Coincidência ou não, o baiano já havia representado o São Paulo FC, que compartilha as mesmas cores com o Funebrero, na luta diante do nigeriano Daniel Attah no ano anterior.

Popó

Quando Mar del Plata sediou os Jogos Pan-Americanos em 1995 – competição na qual Cotto e Popó conquistaram a medalha de prata em suas respectivas categorias – um talento local acabou sendo eliminado nos 16-avos de final no peso mosca: Luis Alberto Lazarte.

El Mosquito sagraria-se campeão mundial pela International Boxing Federation (IBF) – uma das quatro entidades (ao lado das já citadas WBA, WBC e WBO) reconhecidas pelo International Boxing Hall of Fame (IBHOF) – quinze anos após a sua aparição pan-americana.

O título foi conquistado em casa, no ginásio do Club Once Unidos, mas Lazarte vestiu o cinturão, acompanhado de sua equipe, carregando os escudos do Club Atlético Alvarado – sua equipe de coração – e do Club Atlético Defensores de Belgrano – entidade que o abrigou em Buenos Aires.

Luis Lazarte

Ao ser derrotado pelo mexicano Ulises Solis, após empatar o primeiro desafio, Mosquito teve a chance de recuperar o cinturão da IBF diante do filipino John Rimel Casimero novamente em Mardel. O visitante saiu vitorioso, mas a equipe de Lazarte atacou Casimero e sua delegação, tendo que pedir intervenção policial. O caso gerou um conflito diplomático entre Filipinas e Argentina e Luis Alberto Lazarte foi banido do esporte, forçando sua aposentadoria aos 41 anos.

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Judão #12 Política e Cultura Pop

“Eu gostava do Judão quando era um site de cultura pop e não gosto mais agora que virou um site de política”. Esta mensagem pode ser vista neste exato momento no Facebook do JUDÃO – mas a frase, com poucas variações, tem sido bastante recorrente nas nossas vidas nestes últimos tempos.

Já defendemos este ponto, já falamos a respeito com alguns usuários que apreciam a nobre arte do diálogo. Só que quisemos aproveitar aquele que é justamente o nosso último podcast de 2015 para entrar mais a fundo no assunto e dar o que vai ser a nossa palavra final. Aquele link que usaremos SEMPRE que o assunto surgir.

Nada de “retrospectiva 2015” ou “preview 2016”. A parada aqui é: afinal, política tem a ver com cultura pop? Em um ano marcado pela polarização em redes sociais, já deixamos o spoiler aqui: sim, manos e minas, tem a ver PRA CARALHO.

A vida tem a ver com política. Política está nas nossas vidas. Influencia nossas vidas diretamente. E a cultura pop reflete as nossas vidas, não? 😉

O nosso mestre de cerimônias paulistano Borbs comandou uma mesa formada pela trinca santista Renan Martins Frade, Thiago Cardim e por ele, o incendiário (?) colunista e true brother Nicolas Vargas – e eles falaram sobre Star Wars, sobre Marvel e Guerra Civil, sobre South Park, sobre Family Guy… E, claro, sobre política. Sobre a PM do Alckmin, sobre o Donald Trump e outras paradas, tipo TETÊ ESPÍNDOLA.

Mas faltou TANTA coisa… Falaremos, eventualmente, lá no site. Porque agora já deu pra perceber que cultura pop e política andam lado a lado, né? ;D

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Thunder Rádio Show #85 Abujamra

Abu! Abu! André Abujamra pintou na área e falou com Luiz Thunderbird nesta podcast saboroso que você tem acesso agora.

Uma conversa sobre Karnak, sobre Gork, sobre o Mulheres Negras, sobre seu novo disco e muito mais. Abu, esta mente adorável e inventiva, também falou das experiências televisivas, dos trabalhos musicais em filmes nacionais e, também de espiritualidade, vida moderna, dores e delícias mundanas, saudades do pai e incribilidades.

Ah, claro: rolou música ao vivo também!

Clicando abaixo você ouve a íntegra. e você fará isso agora, eu sei.

 

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Mensagem

Por Victor Faria

I

O mito é o ser que é total.

O mesmo gol que abre os céus

É um mito brilhante e leal –

O corpo de um novo Deus,

Vivo e genial.

 

Este, que aqui jogou,

Foi aos poucos decidindo.

Seu existir nos bastou.

Assim foi prosseguindo

E nos guiou.

 

Assim a lenda se escreve

A entrar na eternidade,

E a fecundá-la se deve.

Em alta, em baixa, pela idade

Aos erros, releve.

 

II

Toda carreira é uma batalha.

O destino é o agente.

O herói defende, falha.

É inconsciente.

 

Às luvas em tuas mãos destinadas

Teu pesar cresce.

Que farei eu em bolas alçadas?

 

Ergueste-a, e fez-se.

 

III

O homem e a bola são um só

Quando a bola jaz e a história é feita.

O grito tarda, a garganta em nó.

A torcida espreita.

 

Mito, com louvor em seu Templo

Que Tricolor foi feito ser,

Que houveste a glória e deste o exemplo

De o defender.

 

Teu nome, eleito em grama,

É, na área de nossa glória,

O milagre, a fama,

O eterno em memória.

 

IV

Meu dever fez-me, como goleiro ao mundo.

A regra de ser guardador almou meu ser,

Em ofício escrupuloso e fundo.

 

Firme em minha convicção, tal vivi.

Cumpri contra o Destino o meu dever.

Inutilmente? Não, porque o cumpri.

 

V

Em seu lugar no caminho das esferas,

Com seu manto sagrado e puro,

Tem por seus pés um fato novo e as mortas eras –

O goleiro que tem, deveras,

A bola como porto seguro.

 

VI

Braços erguidos, bola na marca da cal.

Parece um martírio, um dado passo –

A tensão do jogo é natural

A intervenção que possa haver além do espaço.

 

Seu formidável vulto antigo

Precede a prece, promessas ao léu,

Não parece temer o inimigo.

Que ele erga os braços e alcance o céu.

 

VII

Outros haverão de ter

O que houvermos de perder.

Outros poderão ganhar

O que, em nosso pesar,

Parece um erro, um achado,

Segundo o destino dado.

 

Mas o que a eles não remete

É a Magia que se repete

Quando de longe ele mira a glória.

E por isso a sua história

É justa homenagem dada

Por uma nação conquistada.

 

VIII

Com uma das mãos – o Ato e o Destino –

Defendemos. No mesmo gesto, à altura,

A mão se ergue em movimento divino

E a bola afasta. Uma pintura!

 

Fosse a hora que haver o que deveria ser

A mão que o céu alcançou,

O gol não devemos temer.

À glória ele nos alçou.

 

Fosse acaso, vontade ou destino

A mão que ergueu o facho que luziu,

Foi Deus a alma e o corpo menino

Da mão que à taça nos conduziu.

 

IX

Ó campo sagrado, quanto de teu amor

São lágrimas do Tricolor!

Por ti torcemos, quantas mães pediram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantos gols ficaram por gritar

Para que pudéssemos, enfim, ganhar.

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer se tornar um vencedor

Tem que passar além da dor.

Homens ao campo, única sensação.

A luta que precede um ser campeão.

 

X

Ninguém sabe que coisa quer.

Ninguém conhece o talento que tem,

Mal sabe o que é mal nem o que é bem.

(Que ânsia distante perto chora?)

O futuro é incerto e nebuloso.

Tudo se despede, nada prodigioso.

Ó Tricolor, hoje és lamurioso…

 

É a Hora! É o Adeus.

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Trivela #41

Com vocês, no podcast da Trivela, as dez coisas que aprendemos no Brasileirão 2015. Técnicos sem continuidade, a arbitragem precisa de reforma, os técnicos novatos, as arenas que pode ter impulsionado a média de público, o impacto dos jogos às 11h e muitos outros fatores foram debatidos por Bruno Bonsanti, Felipe Lobo, Leandro Iamin e Paulo Júnior.

O time falou também do sorteio das competições europeias que resultou em alguns grandes duelos, de Marta e seus 100 gols que merecem aplausos, o título mexicano do Tigres que investiu pesado para isso, da despedida de Rogério Ceni, da ira de Messi… Pauta das boas, discussão das grandes!

Então clique abaixo e curta mais este podcast da Trivela.

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Dibradoras #26 Aline Pellegrino

As Dibras, escaladas com Renata Mendonça e a apresentadora Nina Cardoso, entrevistaram Aline Pellegrino, ex-jogadora da seleção que assume agora a supervisão de futebol do Corinthians, que colocará time em campo em 2016.

Na pauta também pintou o handebol brasileiro que, após ótima primeira fase, foi eliminado pela Romênia no mata-mata. A rainha Marta, que marcou seu centésimo gol pelo Brasil, também foi lembrada e homenageada no podcast desta semana, que também apresentou os times do brasileirão de 2016.

Clique abaixo e acompanhe mais este Dibradoras!

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Xadrez Verbal #29 Eleições na Venezuela

Com menos trocadilhos do Matias do que é o normal, falaremos do resultado das eleições parlamentares na Venezuela e de Maduro apresentando seu programa no túmulo de Chávez. O que significa a vitória da oposição? Significa, pelo menos, que Mauricio Macri desistiu de pedir a suspensão da Venezuela do MERCOSUL. Mauri que tomou posse como presidente argentino, governada interinamente por doze horas, já que ele e Cristina Kirchner não entraram em acordo sobre onde e quando seria a cerimônia de posse.

Também não entraram em acordo sobre quem fica com o perfil do Twitter da Casa Rosada, que foi roubado. Sim, você leu direito. Finalmente, um giro pelo Oriente Médio e a declaração de Putin sobre o uso de armas nucleares. Falando em giro, falamos inclusive de poluição em Pequim. O que lembra: a discussão da COP21 ficou para a semana que vem. E mais um Menino Neymar metalinguístico.

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Conexão Sudaca #77 Tr3s de Corazón

Grande encontro com Felipe Muñoz e Sebástian Mejía, respectivamente baterista e vocalista/guitarrista da banda colombiana Tr3s de Corazón.

A cena musical em Medellín e no resto do continente, a rivalidade do clássico paisa, o trabalho de José Pekerman à frente da Selección Colombia, o sotaque de Wagner Moura, o legado negativo do narco-tráfico, a atual situação política no país y mucho más.

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Folha Seca #92 Paysandu

O Folha Seca #92 entrevistou Gustavo Godinho, diretor do documentário Paysandu – 100 Anos de Payxão.

O programa também falou de Cinefoot, Tite, Rio de Janeiro e muito mais.

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O Elo Partido

Por Victor Faria

Subitamente, não sabia mais como se escalava o time. Era como se enfrentasse uma tarefa desconhecida, com que nunca tinha tido qualquer familiaridade. Recomeçou do princípio. O goleiro, laterais, um zagueiro – e nada. Suspirou com desânimo e olhou atento aquele time que entrava em campo. Vagarosamente, tentou lembrar das opções do time – e de novo parou, sem sequência. Sua imagem refletida, rugas e suor na testa: subitamente o lateral-direito era o da esquerda, o lateral-esquerdo postado à direita.

– Vou descendo – anunciou a mulher, impaciente.

– Escuta – disse ele, forçando o tom de brincadeira – Como é mesmo que se chama nosso camisa nove?

– Engraçadinho – e a mulher saiu sem olhá-lo.

Quanto tempo durou aquela hesitação? Essa coisa familiar, corriqueira, cotidiana – escalar o time. Uns poucos segundos mais, um minuto, dois minutos ou mais? O tempo da ansiedade, não o do relógio. Não fazia calor, e nas costas das suas mãos começou a porejar um suor incômodo. Assim como surgiu, na mesma vertigem, passou: logo suas mãos inconscientes se organizaram, os pensamentos e, independentes, listaram um a um cada nome e posição em campo. O puseram em condições de, satisfeito, sair de casa. Ia a um jantar.

Estimulado pelo uísque, desejoso de atrair a atenção dos circunstantes, ocorreu-lhe, no meio da conversa, contar o pequeno incidente pitoresco:

– Agora mesmo, em casa. Ao me vestir. Esqueci como é que se escala o time.

E antes que despertasse qualquer curiosidade, uma chave se torceu dentro dele. O fato insignificante deixou de ser engraçado. Uma aflição mordeu-o no íntimo. Como uma luz que se apaga. Uma advertência. Um sinal que anuncia, que espreita e ameaça.

– Essa é boa – curioso ou simplesmente gentil, um dos ouvintes procurou estimulá-lo.

Mas o esquecimento já não era apenas um incidente pitoresco. Disfarçou o próprio desconforto e, grave, interditado, sentiu a língua travada, como se esquecer o time titular fosse logicamente sucedido da incapacidade de contar.

Apenas um lapso, que pode acontecer a qualquer um. Tolice sem importância. E nem se lembrou mais, até que dias depois, achando graça, a mulher tirou-o da dificuldade: escalou por ele o time desfeito. Uma terceira vez ocorreu dias depois. “Estou ficando gagá”, pensou, entre divertido e irritado. Retirou-se e procurou com calma recuperar a inocência perdida. Pois era como ter perdido a inocência, de súbito autoconsciente.

Mas logo esqueceu e saiu para a rua, como todo dia. Estava no elevador do edifício, quando deu acordo de si. Bem disposto, recém-banhado, cheirando à nova loção de barba, olhava com magnanimidade o dia que o esperava, o mundo em torno. Pulsava nas suas veias sãs uma suculenta harmonia. Presente tranquilo, futuro próspero. Confiava em si, confiava na vida.

Só o elevador demorava mais do que de costume, pequeno borrão na manhã alegre e amiga. Não fazia sentido aquela demora que, de repente, perturbou-o como um cisco no olho. Verificou que o elevador continuava para no sétimo andar. Queria não pensar em nada, apenas esperar como todo mundo.

Fechou os olhos, meio tonto, reabriu-os. Ninguém conhecido. Olhou a nuca do homem à sua frente: toutiço sólido, de cinquentão próspero. Jurava que agora o elevador vinha descendo. Quis certificar-se e deu com a luzinha sempre acesa no sétimo andar. Ele continuava parado no sétimo andar. Retirou o lenço do bolso e enxugou a fronte e o pescoço. Vinha-lhe de longe um desconforto a princípio moral – como se tivesse cometido uma falta grave que ali mesmo seria descoberta. Há quanto tempo esperava no elevador? No sétimo andar o contínuo continuava a imobilizar.

Dentro dele, um desejo minucioso de examinar-se. Como costumava fazer quando ia viajar. Arrumar a mala sem esquecer nada, um lenço sequer. Peça por peça, ia passando tudo em revista. Mas naquele momento era como se tivesse esquecido qualquer coisa que não identificava. Que o condenava aos olhos dos que ali ainda aguardavam.

Quando a revisão a que se submetia chegou aos pés, ocorreu-lhe que tinha se esquecido de calçar as meias. Tentou sorrir da dúvida disparatada. E queria lembrar-se, ter certeza de suas meias, do momento em que as calçara. Recompunha cada detalhe de tudo que tinha feito desde o momento em que acordara. A barba, o banho de chuveiro, todos os atos, que, automáticos, inauguravam um novo dia, um novo homem. Usava habitualmente só meias vermelhas, brancas e pretas.

De que cor eram, naquele momento, as suas meias? Um desejo ardente de esticar uma perna, depois a outra, arregaçar as calças e olhar, comprovar. Mas o medo irracional do ridículo, como se todos no elevador acompanhassem a sua preocupação e esperassem apenas um gesto de sua parte para vaiá-lo. Sorriu sem sorrir. O sangue estremeceu pela altura do peito até o pescoço.

A obsessão agarrou-o: de que cor eram as meias, de que cor? As suas meias, as que usava naquele exato momento. De que cor eram? Procurou se lembrar das circunstâncias com que em casa se vestiu, sua rotina, uma cadeia de gestos repetidos inconscientemente. Mas agora precisava lembrar-se: as meias? Tinha vontade de suspender a calça e olhar, mas se continha. Nada o denunciava, um cidadão como outro qualquer, um cavalheiro, impecável, à espera no elevador, que todavia não se deslocava. E ninguém se impacientava. Como se só a ele coubesse quebrar o silêncio. Todos o observavam.

Até que foi invadido pela certeza cruel de que usava meias de outra cor, um verde escancarado em sua indumentária tricolor. A gravata era vermelha, podia ver. A camisa era branca. O terno era preto. Mas as meias. As meias berrantemente verdes tornavam os seus pés alheio, episcopais. Estava de pé sobre pés estranhos.

Enxugou o suor no rosto. Lá fora, os carros e as pessoas passando. A manhã perfeita, luminosa. Mas as meias eram inabsorvíveis. Onde é que fora arranjar aquele par de meias, santo Deus? Ocultas ainda sob as calças, ameaçavam vir a público, denunciá-lo. Agora tinha definitivamente certeza: um escândalo, ridículo, um verde-vivo.

Súbito, como se tivesse estado distraído, ou dormindo, o elevador escancarou a porta no andar térreo. Sentiu-se paralisado, preso ao chão, incapaz de locomover-se com as pessoas à sua frente, os que se postavam às suas costas. Foi preciso quase que o empurrassem, as grotescas meias verdes, para que ele, morto de vergonha, sem poder olhar os próprios pés, se animasse a sair do elevador.

Finalmente tomou coragem para verificar. Suspendeu as calças, fixou com espanto as próprias pernas: agora de novo suas meias eram pretas. E os sapatos voltavam a ser os seus sapatos. Movia-se outra vez com os próprios pés. E o dia prosseguiu em sua confortável rotina. Nem de longe podia pensar em contar pra alguém. Não havia o que contar.

O tempo passou. Nada fora do comum aconteceu nas semanas seguintes. A não ser um pequeno desmaio da memória: esquecera o nome de um amigo do clube. Teimoso, ideia fixa, passou horas tentando lembrar. Não podia dormir sem que lhe viesse o nome que escapava. Uma falha na cadeia lógica e vulgar das lembranças que cercavam aquele antigo colega de trabalho. Puxando pela memória, reavivou pormenores há muito sepultados pelo tempo. Mas o nome. O nome não lhe ocorria. Na ponta da língua, mas inarticulado, desfeito. Tinha de esquecer que esquecera, para então recuperar, espontâneo, o que com esforço não conseguia arrancar de dentro de si mesmo. Tudo perfeito, alerta, mas um pequeno colapso insistente, inexplicável. Via a cara do companheiro, ouvia-lhe a voz, podia descrevê-lo. Mas o nome. O nome por atar. Dormiu frustrado, mais aborrecido do que seria natural diante de lapso tão inexpressivo.

– Marcelo! – no meio da noite acordou assustado e tinha na boca, de graça, atado, o nome que em vão perseguira antes de dormir.

Amnésias assim, sabia, acontecem a todo mundo. Não chegam a ser tema de conversa. Deu de ombros, não comentou nem com a mulher. Dois ou três dias depois, porém. Numa noite em que se recolheu mais cedo, morto de sono. Fisicamente exausto, atirou-se pesadamente à cama e não conseguia deitar-se cômodo, como toda noite.

– Como é mesmo que eu durmo? – queria saber qual a posição que habitualmente tomava para dormir. A postura que usava no sono, insabida. Probleminha idiota, mas que o desorganizara mentalmente e o lançava numa aflita perplexidade física. Deste lado: não era. Virou-se do outro lado: também não. Como distribuir o corpo na cama? Cruzou os braços no peito e sentiu-se estranho, ridículo. Cruzou as mãos e pareceu sinistro, fúnebre. Era como se antecipasse o defunto que não queria ser. Angustiante ideia da morte.

Até que associou o mal-estar com a primeira vez que não soubera escalar o time. Alguma coisa de comum, um escondido traço unia um episódio ao outro. Nada alarmante, só um pouco grotesco. Vexame. Ajeitou o travesseiro, a cabeça alta demais. Afastou o travesseiro, recolheu as pernas, dobrou os joelhos, mas ainda assim não conseguiu retomar a naturalidade. Buscava um ponto de equilíbrio e não o achava. Não era assim, nunca foi assim. E o tempo passava, o sono não vinha. Sentado na cama, passou a mão nos cabelos já brancos e procurou controlar-se. Decidiu recomeçar do princípio e ainda sorriu do próprio embaraço. Tinha a sua graça. Um cidadão morto de sono esquecer como é que costuma dormir.

Para a esquerda. Para a direita. Num princípio de tonteira, a cabeça cresceu de volume e desprendeu-se do corpo, que agora lhe parecia estranho, como se não fosse dele. Enfiou as mãos entre os joelhos, enroscado em si mesmo, fetal. Suportou aquela disciplina por alguns minutos, resistindo ao desejo de se levantar, fugir da cama, do sono, de si mesmo. Vontade de esquecer-se, abandonar o próprio corpo, com que já não se sentia solidário.

– Como é mesmo que eu durmo? Como é raios que eu sempre dormi em minha vida? – e não se sentia confortável.

Como todas as noites, serena, sem arquitetura, a mulher dormia ao seu lado. Impensável acordá-la para perguntar como é que ele dormia. Ficaria uma fera com a brincadeira sem graça. Ou ia pensar que estava louco. Devagarinho, sem alterar a respiração, meteu-se debaixo dos lençóis, de costas, de olhos fechados.

E começou a flutuar no espaço. O jogo recomeçava. Ora só o corpo, girando circularmente, subindo, descendo. Ora o corpo e com o corpo a cama, rolando depressa, mais depressa. Abria os olhos, parava. Mudou de posição, mas agora o sono não vinha. A ponta do sono, inagarrável. O sono desfeito como um novelo amontoado, sem começo nem fim. Sem nó.

Não reencontrava a perdida intimidade consigo mesmo. Não sabia mais deitar-se e dormir. Ficou quieto, tentando esquecer, sem pensar. Deflagrada, a insônia recusava-se a apagar dentro dele. Desejo de absorver-se, reorganizar-se, pedaço por pedaço. Membro por membro. Reintegrar-se. Esquecer-se para dormir. Recostado contra o travesseiro, meio sentado, a noite tinha ancorado para sempre num porto de fadiga e torpor. Noite longa, lenta, oleosa, de silêncio e vácuo.

O dia clareando, libertou-se da insônia e se meteu na cama até a hora de costume.

Dia estafante, devolvido à rotina como se nada tivesse acontecido. Só à noite contou o caso para a mulher que ouviu calada, irrelevante. Mas não contou o que agora lhe parecia absurdo: esquecer-se, como quem perde uma chave, de como deitar-se para dormir. Era um segredo e uma ameaça. E à distância de algumas horas, remoto como uma experiência alheia.

Naquela mesma noite levou para o quarto e para a cama o temor de que tudo ia se repetir. Demorou-se no banheiro. Ao espelho, observou as rugas nos cantos dos olhos, o cabelo branco. Queria afastar a lembrança da véspera. Distrair-se.

E dormiu naturalmente, como todo dia. O cotidiano refeito, as noites tranquilas, repousantes. Até a próxima semana.

Foi a primeira insônia completa de sua vida. Noite branca, hora a hora, minuto após minuto, segundo por segundo. Virava e revirava-se na cama, esbarrava no mesmo desconforto. A vida deixava de fluir. Uma parada, uma ausência. Um elo perdido. Levantava-se, procurava esquecer, desligar-se daquele segredo comprometedor. Ligar as duas pontas do que sempre fora ao que deveria continuar sendo, sem interrupção. Pensou, lembrou, repensou, relembrou. Cruel, a noite vagarosa, a interminável noite ancorada. E a sua pequena desprotegida solidão, palpável, aborrecido plantão pra nada. Estar só e acordado o fazia mais só, mais acordado. Velava a si mesmo. Dormir seria como perder a própria companhia.

O dia claro, alto sol, a casa restituída à sua visão familiar, a cozinha e a copa recendendo ao café fresco, fez a barba, tomou banho e saiu. Queria trabalhar – a incomunicável insônia, de que à luz do sol se envergonhava. Era inverossímil. E era preciso guardar o segredo. Como se escondesse um malfeito infantil, sua culpa.

– Que é que há com você? – a mulher deu um sinal de perceber.

– Nada.

– Então dorme.

O horror de ir para a cama. E a impossibilidade de contar, partilhar sua vergonha. Ficou mais sozinho. Já não era igual a todo mundo. Tinha medo e orgulho – um homem diferente. Sua singularidade ameaçava, mas consolava também. Sentia-se mais próximo de si mesmo.

– Por que você não consulta um médico? – a mulher desconfiava.

Pequenos desvios imperceptíveis. Falhas de memória, hiatos convulsivos. Pensou em consultar um especialista, mas confiava em sua saúde de ferro. Deixou-se de preocupar-se com a escalação do time. Esqueceu a insônia. Ridículo contar a sério que, na hora de dormir, já não sabia como se deitar. Não tinha importância.

Uma tarde, ao falar pelo telefone. Era com o capitão do time, com quem se dava muito bem, juntos prosperaram. A princípio apenas um mal-estar indefinido. Depois não conseguia se lembrar da cara do goleiro. A voz conhecida, a conversa nítida, o riso de sempre, os cacoetes – mas como era mesmo a fisionomia? Desligou o telefone e teve a impressão de que estava pálido. Apertou a cabeça entre as mãos. Fechou e abriu os olhos, pontinhos volantes. Como é a cara dele? A cara sonegada, escamoteada como num passe de mágica. Tudo o mais era como de costume, mas a penetrante sensação de aviso o ameaçava.

Todo mundo tinha uma fisionomia pessoal e intransferível. Mas o goleiro e capitão – como era? Estúpido vazio. Sabia-se despojado de qualquer coisa essencial e, pela primeira vez, frágil, desprotegido contra o que podia acontecer, teve medo, tremeu de medo. Era um compromisso que não queria aceitar, mas de que não conseguia desvencilhar-se. Uma arapuca do tempo, do destino. Precisava apelar para alguém, pedir socorro. Recuar do abismo, mudar de rumo, rejeitar o que podia vir, o que sobrevinha, iminente, incontornável – e não tinha nome, nem configuração.

Desligado de tudo, já sem interesse pelo que acontecia dentro das quatro linhas, recolheu-se à casa. Sua casa poderia protegê-lo. Leu sem pressa o jornal e ligou a televisão. Era um homem normal, um homem como qualquer outro, mas, por trás dos seus gestos, de sua normalidade, um vazio o convocara.

Queria e já não podia contar. E não poder contar o isolava definitivamente, como se, a partir dali, tivesse mudado de lado, passado para outra margem. Dava adeus ao que vinha sendo, a tudo que era – ao dia a dia, aos negócios, ao confortável cotidiano. Mas lutava. Para qualquer nova emergência, não seria apanhado desprevenido.

Uma leve tonteira, como se levitasse, arrebatou-o. perplexo, não aceitava o próprio silêncio. Seu time, não se lembrava do próprio time. Seu nome, seu escudo – tudo permanecia a uma distância inatingível. Lá longe existia, não mais ao seu alcance. Entre ele e o que naturalmente sabia, seu patrimônio, um elo partiu-se, treva opaca, ausência. Automaticamente lembrou do time titular na conquista do Mundial, como num teste decisivo escalou um a um. Perfeito.

Trancou-se no quarto, satisfeito. Espichou-se de costas na cama e leu de cabo a rabo o jornal da tarde. Uma incômoda sonolência fechou-lhe os olhos. A noite caiu sem que percebesse. Acendeu a luz da cabeceira e retomou o jornal como se o lesse pela primeira vez. Voltou à primeira página. Lia e relia o mesmo texto, palavra por palavra. Chegava ao fim e era como se não tivesse lido. Lia sem ler, desligado. Queira estranhar, alarmar-se, mas era como se tivesse sido sempre assim. E a certeza de que assim seria sempre, sem volta possível. Deixou cair o jornal no chão e, esticado na cama, sem qualquer protesto, acompanhava com os olhos a chegada de uma mulher.

– Que é que você tem? – sua mulher veio chamá-lo.

– Nada – respondeu, e estava perfeitamente em paz, resignado.

Brancas paredes despojadas, largo silêncio sem ecos. Desprendera-se de tudo. A longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para além do imaginado.

– Classificamos à Libertadores? – ele perguntou num último esforço.

E, para sempre carismático, conquistado, nem ao menos quis saber em qual colocação.

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Destroyers

Por Leandro Paulo

No último final de semana, o Boavista FC foi comandado por outro ídolo dos anos de glória da equipa de Ramalde. Após a saída do franco-português Petit – que havia retornado ao clube em 2012 – o boliviano Erwin Sánchez estreou com derrota por 3 a 2 na visita ao Arouca, na luta contra um novo rebaixamento.

Em sua volta ao Estádio do Bessa XXI, o Platini da Bolívia encontra os axedrezados em situação melhor – apesar da incômoda 16ª colocação com apenas 9 pontos conquistados, o Pantera teve de jogar a Liga de Honra na temporada 2008/9 por conta do envolvimento de seus dirigentes no escândalo Apito Final, sendo rebaixado para a II Divisão B –  do que o time que o revelou.

O Club Destroyers foi fundado em 14 de setembro de 1948 na cidade de Santa Cruz de la Sierra por um grupo de amigos que frequentavam as regiões do mercado Los Pozos, do Parque El Arenal, da igreja San Francisco e das ruas Murillo e Charcas no bairro popular La Máquina Vieja. Essa comunidade foi formada no início da década de 40 após a doação de lotes para os ex-combatentes da Guerra do Chaco (1932-1935) que passavam por dificuldades financeiras ou com problemas de saúde.

O nome escolhido para a nova entidade esportiva era alusivo à Segunda Guerra Mundial, por sugestão de um dos fundadores que foi ao cinema e ficou impressionado com as façanhas do navio homônimo.

Dois anos antes o Club Blooming havia se formado na calle Independencia, no centro de Santa Cruz. Essas duas equipes faziam o grande clássico da cidade. Nessa época, a torcida albicelete apelidou os seus pares aurinegros de cuchuquis (algo como os “sujos”) acirrando ainda mais a rivalidade entre as classes sociais. Na década seguinte, surgiu o Oriente Petrolero, em 1955, para completar o trio de ferro da Asociación Cruceña de Fútbol.

Os canarios dominaram a liga local em meados da década de 1960, com a conquista do bicampeonato em 1965-66 justamente quando o futebol se profissionalizou em Santa Cruz. Além dos bolivianos Chiqui Herrera, Meilton Rosales e Tito Melgar, destacavam-se no plantel cuchuqui o brasileiro Gérson e os paraguaios Dionisio Amarilla, Eladio Nuñez e Juan Medina.

1965

Em 1973, debutava com apenas 15 anos o maior jogador da história do clube; Erwin Romero. Chichi jogou apenas duas temporadas pela Máquina Vieja, sendo transferido para o Oriente Petrolero, pois o clube já começava a enfrentar sua primeira crise.

Com a criação da Liga del Fútbol Profesional Boliviano, em 1977, os clubes cruceños subiram o Altiplano para desafiar as equipes de Cochabamba, La Paz, Oruro, Potosí e Sucre. Contudo, os investidores da cidade passaram a apoiar apenas Blooming e Oriente Petrolero, já que o Destroyers era fiel ao antigo formato da ACF e acabou sendo “rebaixado” pela LFPB.

Foi somente em 1984, que o clube conseguiu o acesso à Primera, sob o comando de Miguel Oliva. A base de La Verde para as Eliminatórias do Mundial de 1986 era formada por jogadores bloominguistas, atuais campeões, sendo assim os aurinegros não mediram esforços para se igualar aos rivais em sua estreia na elite do futebol boliviano.

A primeira incorporação foi o repatriado Carlos Aragonés, que jogou de 1981 a 84 no Palmeiras e estava defendendo o Coritiba que seria o campeão brasileiro daquele ano, depois contrataram Federico Justiniano, destaque do Guabirá, e foram buscar na Argentina o goleiro Carlos Trucco, com passagens por Unión de Santa Fé, Vélez Sarzfield e Estudiantes de Río Cuarto. Contudo, foi nas categorias de base que o Destroyers completou o seu esquadrão com as revelações do já citado Erwin Sánchez, Marco Antonio Etcheverry e Mauricio Ramos.

Destroyers

Em 1988, o clube chegou às semifinais do campeonato graças ao talento do Trio de Oro, que seriam a espinha dorsal da equipe que classificaria La Verde à Copa do Mundo de 1994, após 44 anos de espera. O então campeão Bolívar contratou primeiro Platini e depois El Diablo, enquanto Tapera seguiu no clube até 1993.

Mesmo perdendo as suas maiores revelações, o Destroyers se manteve entre os grandes até o final da década. No começo dos anos 2000 retornou às competições da ACF, agora etapa classificatória para o Nacional B, objetivo alcançado em 2004 mas que foi seguido de novo descenso em 2007.

Em maio de 2012, as arquibancadas do Estádio Ramón Tahuichi Aguilera ficaram mais vazias com a morte do torcedor-símbolo Mario Frías Lijerón, mais conhecido como Fusil, um símbolo cultural e turístico da cidade, pois era o engraxate mais disputado da Plaza 24 de Septiembre.

Fusil

Na temporada passada, conseguiu chegar à fase final, com a volta de Federico Justiniano (agora na casamata), mas terminou o hexagonal na penúltima colocação.Já na última eliminatória regional não conseguiu se classificar, perdendo a vaga departamental para o Guabirá e ainda viu o surpreendente Royal Pari garantir a vaga após vencer a Copa Bolívia de 2015.

Enquanto o futebol moderno domina o cenário mundial, hei de torcer para que a ternura de Fusil abençoe o ressurgimento do Destroyers, clube que espalhou apenas amor e carinho em suas batalhas.

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Futebol Urgente #98

Nos vinte anos de Santos 5×2 Fluminense, fomos presenteados com Fernando Toro em grande atuação. Ele e sua brochura azul bateram forte no futebol e na vida doentia de gerentes de banco e estações inteligentes e poliglotas de metrô, propagandas maliciosas e outras cascatas do mundo moderno.

Eto´o vai jogar o Come-Fogo? Prass cantando rap?  Rogério Ceni foi isso tudo mesmo? Goleiro alemão pagando multa? A Macaca virou Gorila e ninguém faz nem fala nada? Pai de Neymar falando que foi bonzinho com o Santos? Tem tudo isso e um tanto mais na edição que  está aqui embaixo.

 

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